– Sem resposta alguma, diante de uma crise que pode arrasar as finanças públicas e provocar crise cambial em meio a pandemia, Paulo Guedes limita-se a repetir velhos clichês. Um programa alternativo é urgente – e mais possível que nunca –

É comovente a empáfia dos larápios, quando ainda não desmascarados. Em todo o mundo, diante dos terremotos nos mercados financeiros e da sombra de recessão, falências e demissões em massa, os governos apressam-se a adotar medidas que afastam ou reduzem os riscos. A intensidade varia, mas em quase todos os casos, a sensação de perigo supera as travas da ideologia. As decisões incluem estímulo do Estado à economia e, onde há políticas de “austeridade” em vigor, sua reversão ao menos parcial. Na China, as regiões mais atingidas pelo vírus estão lançando programas de dezenas de bilhões de dólares para ampliar a Saúde pública, recuperar áreas urbanas degradadas e construir ferrovias. No Japão e na Itália dois pacotes econômicos seguidos oferecem socorro financeiro às empresas atingidas por circulação e atividade produtiva reduzidas. Na Alemanha, o Estado oferecerá ajuda financeira aos assalariados obrigados a se afastar do trabalho. Todos se mobilizam – menos o Brasil.

Ao contrário. Nesta terça-feira (10/3), num intervalo de poucas horas, o governo lançou duas manifestações bizarras. De Miami, onde se encontrou-se com Trump, Bolsonaro minimizou a crise, afirmando que “a questão do coronavírus” não é “isso tudo que a mídia propaga”. À noite, ao se encontrar com os presidentes da Câmara e do Senado, o ministro Paulo Guedes entregou-lhes ofício em que se limita a relacionar modorrentamente os 19 projetos que já tramitam no Legislativo e que, segundo ele, poderiam “blindar a economia brasileira da crise internacional”. Se aprovadas, as propostas conduzirão o país na caminho oposto ao adotado em todo o mundo. Os estados e municípios serão estimulados adiminuir ainda mais os recursos que destinam à Saúde (!) e Educação (PEC do “Pacto Federativo”). Os serviços públicos poderão funcionar em horário reduzido (PEC “Emergencial”). Fundos públicos que estimulam a Educação, a Saúde, a Ciência e Tecnologia serão extintos (PEC “dos fundos públicos”). Os empregadores poderão ampliar a precarização – inclusive driblando normas de Saúde e proteção contra acidades (Carteira Verde-Amarela). A lista é vasta; o sentido das medidas, sempre o mesmo: cortar o gasto social; impedir o Estado de estimular a economia; eliminar direitos sociais.

Três fatores – ou uma combinação entre eles – podem estar por trás de um alheamento tão flagrante à crise e seus efeitos: a) Bolsonaro e Guedes desconhecem realmente a gravidade do problema e o enxergam como uma conspiração (Paul Krugman, Nobel de Economia, atribui a este fato a atitude de Donald Trump e seus assessores econômicos – quase tão alienada quanto a do governo brasileiro – diante dos sucessivos sinais de alarme); b) Como atiradores fanáticos, diante de uma multidão, o presidente e seu ministro agem para infligir à economia brasileira o máximo dano possível, antes de serem parados; c) O ministro tem consciência de que algo muito grave está por vir. A queda abrupta do preço das commodities derrubará as exportações brasileiras, fortemente primarizadas. A fuga de capitais já começou. Há crise cambial à vista. No plano interno, a recessão derrubará as receitas do Estado, fará disparar o déficit fiscal e impedirá até mesmo a adoção de medidas paliativas. Ao demandar do Congresso o que sabe ser impossível, Guedes prepara-se para abandonar o barco.

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Seja como for, a crise já estabeleceu outro cenário político – e a mudança vai se acentuar rapidamente, nos próximos dias. São duas as mudanças principais. Como apontou Outras Palavras, há duas semanas, o esforço de Bolsonaro para criar cortina de fumaça, atraindo todas as atenções para os atos de ultradireita de 15 de março, dificilmente se sustentaria. A provocação já saiu das manchetes e é improvável que retorne. Se for esperto, o presidente cancelará os atos. Se insistir neles, transmitirá a imagem de alguém indisposto ao trabalho e ao bem comum, interessado em atiçar os ânimos e em gerar conflitos, com o país mergulhado em crise. O erro pode ser devastador.

O segundo efeito é o surgimento de uma primeira trinca no amplo consenso que havia, até a semana passada, em favor das (contra-)reformas de Guedes e Bolsonaro. Algumas vozes dissonantes já surgem, além dos que defendem o pós-capitalismo. A economista Monica de Bolle tem se destacado, por sua combatividade. A revista Piauí deu espaço a suas críticas. A gravidade da crise fez balançar políticos conservadores que não perderam o senso do real. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que até há pouco procurava credenciar-se junto ao grande poder econômico, admitiu timidamente: “A gente não consegue organizar um país apenas fazendo reformas e cortando, cortando, cortando (…) Os investimentos públicos são muito importantes também”.

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Surgiu a oportunidade, provavelmente inédita, de tornar claro, para as maiorias, o caráter do governo; obrigá-lo a retroceder; abrir caminho para uma retomada. É provável que as crises, tanto a sanitária quanto a econômico-financeira, prolonguem-se por meses. As condições atuais – desinvestimento em Saúde e em todas as políticas sociais, ausência de estímulos relevantes do Estado à Economia; ataque aos direitos sociais – irão impor, à sociedade, um sofrimento muito maior que o provocado pela própria pandemia.

Mas denúncia não basta. Nas emergências, as vozes ouvidas são as que propõem saídas reais. Está aberta uma larga avenida para apresentar um conjunto sintético – porém expressivo – de políticas opostas às atuais. Elas devem ser capazes de, em conjunto, sinalizar outro horizonte político e outra lógica social, opostos aos atuais. Nesse sentido serão radicais (e irão muito além das de Mônica de Bolle e Rodrigo Maia), mas não descoladas das necessidades concretas da maioria. A recuperação da Saúde pública, para proteger a população. O resgate do Programa de Saúde da Família e do Mais Médicos. A concessão de benefícios previdenciários cruelmente retardados, por uma fila do INSS que o governo não se empenha em resolver. O auxílio para as pequenas empresas (e os agricultores familiares) atingidas pela crise.

Para obter recursos, uma Reforma Tributária de emergência. Talvez um imposto extraordinário sobre os lucros dos bancos e as grandes fortunas. O fim da ideia obtusa segundo a qual os Estados não podem emitir moeda para custear o Comum, embora possam fazê-lo para salvar os bancos e a aristocracia financeira.

O Posto Ipiranga não tem mais combustível – e está em chamas. A oportunidade abriu-se. Haverá, desta vez, quem se disponha a aproveitá-la?

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* Antonio Martins é editor de Outras Palavras.

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