As lembranças da infância sopram-me redemoinhos empoeirados, tufos em rodopios, bailantes pelas ruas de terra de Montes Claros. Densas cirandas de ventos que eu pulava dentro, de um pé só, ressabiado, a procura do Saci Pererê e de suas estripulias. Eram ventos soprantes de araras, papagaios e pipas. Alísios que alçavam minha sureca – arara sem rabiola, vermelhamarela, losangular, saliente e atrevida. Raia que coroava o azul morno dos céus. Os ventos chegavam sorrateiros, sem avisar, soprando devagarzinho, brisazinhas. Com o decorrer dos dias, iam engrossando, tomando corpo, e brotavam os redemoinhos. A meninada não tinha consciência cronológica dos ritos da natureza, agia instintivamente. Ventou, então estava na hora de soltar pipa. A primeira semana de agosto era gasta no gosto de manufaturar araras e manivelas, de providenciar, no escondido, o pó de vidro e a cola de madeira para o perigoso cerol, de arranjar as taliscas de bambu no Pequi de Joani, de descolar uns trocados para comprar os papéis de seda coloridos e os carretéis de linha 40 na lojinha do Seu Tamiro, na Travessa Cônego Marcos. O sonho da criançada era montar uma arara biteluda, multicolorida, rabuda ou sureca, e ter uma manivela de 16 cruzetas nas mãos para recolher ligeiro e esticadinha a linha. A chegada dos ventos levava-nos aos finais das ruas, aos mangueiros, aonde não havia postes de luz, nem fios inimigos, ladrões dos artefatos da alegria. Ventanias que embicavam pelas ruas soprando catopés e embaralhando suas fitas de cores vivas. Poeira e brancura. Puras. Nós, meninos, só queríamos olhar para os céus e ver nossas araras nas maiores alturas, sublimes, como um gavião reinante à caça de uma presa. Ficávamos de butuca a procura de outra pipa, içada por meninos de outros bairros. Os territórios e domínios da garotada eram demarcados pelos limites das ruas, mas o céu não era de ninguém. Lá em cima, no campo de batalha, valia tudo. Se víssemos uma arara empinada, o desafio era certo. A conquista era resgatá-la com classe. A manha era dar fortes toques na linha, fazendo a pipa mergulhar lateralmente, em velocidade, até alcançar e laçar em 360° a outra linha descuidada. Uma vez fisgada, enlaçada, recolhíamos com ligeireza a presa na manivela e ficávamos no aguardo do envergonhado dono a procura da arara derrotada. O orgulho espirrava de satisfação. Aqui pra nós, passados tantos anos, confesso: perdi a maioria das batalhas. Pretéritos os ventos de agosto, a poeira, os catopês, os roxos e os amarelos dos ipês, setembro surgia quente e trazia chuvas esporádicas. O pó sumia, a terra dura amolecia, os riscos das fincas e as biloias apareciam por todas as ruas e terrenos da cidade. A meninada descalça, sem nem bem saber, esquecia as pipas, e furava o chão macio com o dedão. Estava na hora de desentocar as bolinhas de gude. Dum dia por outro, não havia uma esquina que não tinha um bolo de meninos no “Gute please, todos”. Era assim mesmo, com essa mistura de inglês e português, que se iniciava uma partida de bolinha. Daí, um o garoto berrava: “bololô na minha, quero tudo e não dou nada”. Mais ditadorial, impossível. Quem gritasse primeiro, além de não poder ser alvejado, mesmo “estando no jeito”, tinha direito a todas regalias, mandingas e favorecimentos, tais como: mão quieta, mãos nos peitos, rondas, etc. Cada um tinha sua bolinha sorteira (da sorte), o bolofofo (bolinha grande da cor de café com leite), a esfera minúscula e as olhos de gato, gataiadas, de matar de inveja. A despedida das águas era o tempo de sairmos à cata de tanajuras. A meninada toda, com garrafas debaixo do braço, espalhava-se pelas ruas colhendo as formigonas bundudas para trocar por picolés com o sorveteiro Toni Pinguim. O nordestino adorava comê-las fritas como pipoca, mas tínhamos a leve desconfiança de que usava a nata das bundas como ingrediente de seus tão procurados picolés cremosos. O maior desejo da garotada era possuir um carrinho de rolimã. Andávamos a cidade inteira pelas oficinas mecânicas em busca de rolamentos, a coisa mais difícil e cara do mundo. Precisávamos de quatro: dois mais robustos para o eixo de trás, que ficava sob o banco, e outros dois, que até podiam ser menores, para o eixo da frente, comandado pelos pés do piloto. Quem não tinha carrinho se oferecia para ser o motor braçal: a cada cinco voltas empurrando o bólido pelo circuito dos passeios, com seu dono a bordo, tinha direito a uma volta de brinde. Os motores-meninos mais fortes proporcionavam maior velocidade e eram disputados e, até, presenteados com voltas extras. As competições eram rotineiras. A vontade de ganhar e a falta de freios causavam sucessivos acidentes. Todos os garotos mostravam as palmas das mãos escalavradas, os joelhos e os cotovelos arranhados e, por vezes, a testa rachada. À tardinha, no banho, era um chororô só. As mães esfregavam sem dó as perebas dos pilotos para retirar a sujeira impregnada nos ferimentos e, em seguida, passavam mertiolate. Como aquilo ardia! Além do esmeril causado pelos carrinhos de rolamento, sempre surgia um ou outro menino com gesso no braço ou na perna, dente quebrado ou cabeça lascada, devido às estripulias. O nosso cabaspará, chamado em Belo Horizonte de bentealtas, era jogado no passeio dos Melo Franco. Havia lá uma tampa de ferro da Companhia de Água e Esgoto que servia como um dos apoios para o jogo. As duplas se formavam e aguardavam a vez, definida no par ou ímpar. Horas se passavam naquele divertido vaivém, na tentativa de derrubar a casinha piramidal feita com três pauzinhos de madeira pregados num quadradinho de couro. Nada era mais prazeroso do que aparar no ar uma bola defendida ou arremessada e gritar: “Vitória!”. Quase sempre, quando chegava a vez da minha dupla jogar, alguém gritava grosso da esquina: – Ô Uuucho! Era um gaiato imitando a voz do meu avô Pacifico me chamando pra casa. Um truque para que outra dupla tomasse meu lugar na brincadeira. Sabia que era um