Ai de ti, Haiti – Por José Couto Nogueira* – Em Cima da Notícia

Ai de ti, Haiti – Por José Couto Nogueira*

 O ex-presidente do Haiti, Jovenel Moise, com sua esposa e primeira-dama, Martine Moise, em 23 de maio de 2018, em Porto Príncipe (Hector Retamala/AFP)  Pouco se fala do país mais pobre do Hemisfério Ocidental; só quando acontece alguma desgraça maior, no meio da desolação permanente. Agora foi o assassinato do presidente Jovenel Moïse, de 53 anos, por tantos motivos que ninguém sabe se teria sido apenas um (droga?), ou vários. O mundo cresce e o Haiti esmorece; sempre foi assim. O ex-presidente do Haiti, Jovenel Moise, com sua esposa e primeira-dama, Martine Moise, em 23 de maio de 2018, em Porto Príncipe A última vez que nos lembramos de falar no Haiti foi aquando do terremoto devastador de 2010, ou da epidemia de cólera que se lhe seguiu. Também houve protestos sobre a forma como a bem-intencionada ajuda humanitária das Nações Unidas desapareceu sem mostrar qualquer benefício para a população. Ninguém sabe se os bilhões foram absorvidos pelas autoridades locais e importadas (houve um corpo de intervenção liderado pelo Brasil), ou pelas ONGs que se multiplicaram no terreno. Nove mil milhões de dólares desapareceram de todas as maneiras possíveis, e hoje o país continua tão pobre e desesperado como em 2010. Leia também Haiti precisa novamente de ajuda internacional – Por Isaac Risco* Certamente não falamos no Haiti das inúmeras vezes que a política local, completamente disléxica, produziu revoluções e mudanças de presidente. Ao contrário da fome, que perturba o mundo todo, mas ninguém no mundo faz nada, a situação política não parece interessar nem os norte-americanos, que mandaram no país durante a época em que se metiam em tudo o que mexesse ao Sul do Rio Grande. Atualmente, para quem queira saber os pormenores, só há dez dos trinta membros do Senado porque os outros terminaram os mandantos há mais de um ano, o parlamento não tem ninguém, porque os mandatos acabaram o ano passado, e o presidente do Supremo Tribunal acaba de morrer de Covid. O judiciário também está paralizado, com os juízes em greve para chamar a atenção para o perigo que a carreira representa. As gangues que entretanto se formaram não levam a bem condenações em tribunal, nos poucos casos que chegam a julgamento. Segundo a opinião de Didier Le Bret, ex-embaixador francês no Haiti, está tudo na mão do Primeiro Ministro interino, Claude Joseph. Interino, porquê? Porque foi demitido há dois dias pelo presidente asssassinado, o sétimo durante os anos Möise, e o seu substituto, Ariel Henry, neurocirurgião, ainda não tomou posse. Möise governava por decreto há mais de um ano e deixou passar o calendário de eleição presidencial, pelo que era, na prática, um ditador. A presente situação data da eleição de Michel Martelly em 2011, com uma deterioração geral da segurança. Serviços básicos nunca houve, ou o pouco que havia desapareceu no terremoto de 2010. Martelly aguentou e reprimiu diversas revoltas e conseguiu terminar o mandato, passado a presidência para Möise, em 2015. Moïse era precisamente um dos envolvidos no escândalo dos dinheiros internacionais. Exportador de banana, teria emitido faturas falsas para cobrir desvios do dinheiro enviado pelas Nações Unidas. A eleição foi complicadíssima, tanto que ele só tomou posse 14 meses depois de eleito. A oposição nunca levou a sua vitória a bem, o que provocou uma paralização dos serviços públicos, mesmo a tempo para a chegada da pandemia de Covid-19. Aliás, o Haiti é o único país do mundo com zero vacinados, depois de ter recusado a oferta de AstraZeneca dentro do programa Covax, alegando que não era segura (Por favor, não ria. Isto é um dramalhão sem espaço para humor). É interessante notar que o Haiti foi o primeiro país da América Central a conquistar a independência, em 1803, quando os escravos se revoltaram, derrotaram as tropas enviadas por Napoleão e massacraram todos os colonos que os exploravam sem dó. Mas, ao contrário de outros países que mais tarde também conseguiram tornar-se independentes, não havia uma classe média para substituir os senhores franceses. O herói da resistência, Toussaint Louverture (os haitianos costumam ter nomes que parecem inspirados no Asterix), foi morto em combate. Quem conseguiu a vitória final foi o seu lugar-tenente, Jacques Dessalines, mas, como retaliação, a França e a Europa colocaram o país na lista negra, exigindo compensação às famílias dos colonos que tinham escapado. Durante 60 anos o país permaneceu isolado na sua miséria e ignorância, sem quadros nem maneira de os arranjar. Até ao princípio do século 20, houve 20 presidentes, sendo 16 depostos ou assassinados. Finalmente, em 1915, chegaram os norte-americanos, que governaram direta ou indiretamente até 1946, quando permitiram a eleição do primeiro presidente negro, Dusmarsais Estimé. Mais agitação, até surgir o primeiro populista moderno, François Duvalier, eleito em 1957, e que governou com mão de ferro. Com os seus famigerados tontons macutes, Papa Doc manteve-se vitaliciamente e passou o saque para o filho, conhecido como Baby Doc, em 1971. Mas o Baby era sobretudo um menino mimado, educado na Suiça (sim, educado na Suiça) e não soube lidar com a violência necessária para manter o poder, embora se esforçasse bastante. Exilou-se na França em 1986, quando a situação se tornou insustentável. Para encurtar uma longa e dolorosa história, em 1994 os norte-americanos mandaram tropa e impuseram o padre salesiano Jean-Bertrand Aristide, que se aguentou até 2004. Levado quase à força pelos marines, Aristide exilou-se na África do Sul. As Nações Unidas criaram uma Missão para a Estabilização no Haiti (Minustah) constituida por militares de vários países e comandada pelos brasileiros. Em 2010 aconteceu o terremoto. Entretanto, muitos haitianos tinham emigrado para os Estados Unidos, sobretudo quando da grande fome da década de 1980. Lá conheceram duas instituições muito específicas, a violência armada e as gangs de narcotráfico. Muitos acabaram por voltar e nos últimos anos a violência no país tem passado rapidamente da política para o gangsterismo. Regularmente são asssinados estrangeiros das ONGs que ainda insistem em ajudar e a violência entre grupos armados, que incluem militares, não pára de crescer. Por … Continue lendo Ai de ti, Haiti – Por José Couto Nogueira*