A cada 10 presos no Estado, sete são negros; Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial é de “aplicação obrigatória”
A música “Preto Demais”, do cantor Hugo Ojuara, narra a prisão de um “neguinho na praça Sete”. Nos versos, a mãe do rapaz, uma empregada doméstica, questiona na delegacia o motivo da detenção. “O doutor começa então a descrever o caso: / É que ele é preto demais/ Corre demais, fala demais, sorri demais/ Tá estudando demais, comprando demais/ Viajando demais e assim não dá mais”, canta Ojuara. Embora o relato seja fictício, reflete histórias reais de presos e condenados que, assim como “neguinho”, tiveram os julgamentos influenciados pela cor da pele.
Em Minas Gerais, sete em cada dez detentos são negros, segundo o Anuário de Segurança Pública. Esta super-representação está, de acordo com o próprio Judiciário, relacionada ao racismo estrutural nos processos judiciais. Um Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), torna-se de aplicação obrigatória em todos os tribunais do país.
“Verificamos a aplicação diferenciada da lei entre pessoas negras e pessoas brancas – a chamada ‘discriminação de facto’. Diante do mesmo comando normativo, pessoas de diferentes raças sofrem consequências distintas”, afirma um trecho do documento, que reúne conceitos, orientações e um guia para magistrados durante o julgamento.
O protocolo cita, por exemplo, os casos relacionados ao porte de drogas: “Enquanto pessoas brancas tendem a ser classificadas como usuárias, beneficiando-se da despenalização prevista na Lei de Drogas, pessoas negras são frequentemente enquadradas como traficantes, enfrentando consequências penais muito mais severas”.
De fato, os números do último Anuário de Segurança Pública de Minas Gerais, publicado em 2024 com dados relativos a 2023, mostram uma maioria negra atrás das grades: 48,77% da população carcerária se declara parda, e 24,81%, preta, representando, ao todo, 73,58% do total de presos. Em números absolutos, são 48.753 detentos negros, o triplo do número de brancos (15.270).
Para a superintendente da Coordenadoria de Equidade de Gênero, Raça, Diversidade, Condição Física ou Similar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), desembargadora Evangelina Castilho Duarte, os dados do sistema prisional confirmam que existe um problema no Estado. “Setenta por cento dos presos são negros. Isso já evidencia uma visão distorcida. Será que os brancos não estão cometendo crimes, ou será que eles estão conseguindo benefícios da lei enquanto os negros não conseguem?”, questiona.
Evangelina Castilho Duarte garante que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial será implementado de forma efetiva em Minas Gerais, assim como aconteceu em 2021 com o manual de noções de gênero. “Essa pessoa negra sofreu isso? Entrou no processo só por ser negra? Precisamos avaliar. O CNJ quer que os juízes adotem esse protocolo e passem a aplicar o que está na cartilha”.
Áreas de aplicação
De acordo com a desembargadora, a mudança de perspectiva sobre réus e vítimas negras aplica-se a todas as áreas do direito, e não somente à criminal.
“Vamos precisar discutir com os juízes do trabalho se os trabalhadores enfrentam dificuldades na contratação ou demissão por serem negros. No direito da família, ao conceder a guarda de crianças, precisamos analisar se ela está sendo dada a uma pessoa branca porque se acredita que um pai branco vai cuidar melhor da criança”.
‘Está andando de Corolla?’, PM aborda e prende vendedor preto
Com a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial em todo o país, os juízes deverão se perguntar se há indícios de que “o racismo influenciou a condução da investigação, desde a abordagem policial até a sentença condenatória”, conforme o documento elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Embora o questionamento possa parecer simples, ele é fundamental para evitar que pessoas sejam presas injustamente e cumpram sentenças indevidas.
Um exemplo disso aconteceu com Jonathan (nome alterado para preservar o processo), vendedor em uma agência de veículos na região da Pampulha, em Belo Horizonte. Ele precisou acionar um advogado após ter sido violentamente algemado durante o expediente. A abordagem ocorreu quando saiu para comprar gasolina para um dos carros do estabelecimento.
“Após a compra, eu corri um pouco porque estava com pressa. Foi então que notei os policiais vindo na minha direção. Eles me revistaram, viram que eu estava com a chave do carro na mão, e aí começou o racismo: ‘Você está andando de Corolla?’”, relata Jonathan. O vendedor explicou que o veículo pertencia ao seu pai e apontou na direção dele, mas a abordagem continuou.
“Um dos policiais tentou puxar a chave da minha mão e cortou meu dedo. Me puxaram pelo braço e gritaram comigo no meio da avenida, enquanto as pessoas paravam para olhar. De repente, me deitaram no chão e me levaram para a viatura, dizendo que eu ficaria preso. Perguntei o motivo e a resposta foi: ‘Porque você é folgado’”, continua Jonathan.
No caminho para a delegacia, o vendedor conta que os policiais fizeram movimentos em zigue-zague com a viatura, causando ferimentos nele, enquanto rolava na parte traseira do veículo.
“A abordagem foi claramente racista. Na delegacia, um policial se virou para mim e disse: ‘Está vendo? Você sabe conversar. Parece ser um menino de boa’. Eu respondi que estava trabalhando e que só fui abordado por ser negro. Nesse momento, ele virou as costas e saiu”. Jonathan ficou na delegacia das 15h às 4h30, quando conseguiu ser liberado.
Análise: ‘Judiciário reproduz o racismo’
O pesquisador e especialista em criminologia e direito penal Jackson Quitete afirma que é inegável que a esfera judicial, assim como outras instituições da sociedade brasileira, reproduz o racismo.
“É possível, sim, afirmar que no Brasil as instituições são racistas, incluindo o Judiciário e os órgãos de segurança. Os dados do sistema carcerário revelam a materialização do racismo estrutural e institucional no país. A maior criminalização de pessoas negras, em comparação com pessoas brancas, demonstra o impacto desproporcional das legislações criminais sobre a população negra. Isso é fruto de uma questão histórica que não podemos desconsiderar”, analisa.
Jackson Quitete, que tem o Judiciário brasileiro como um dos seus objetos de estudo, ressalta que atribuir a maior presença de pessoas negras no sistema carcerário ao fato de “cometerem mais crimes” é uma visão reducionista.
“É um equívoco e uma ingenuidade acreditar que o número maior de criminalização e aprisionamento de pessoas negras, em comparação com pessoas brancas, é mera coincidência. Não é. Isso resulta de um processo histórico de criminalização dessa população”, destaca o especialista.
Racismo: onde denunciar?
Disque 100 (Direitos Humanos)
Disque 181 (Disque Denúncia Unificado – DDU)
Delegacia Especializada de Investigação de Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTFobia e Intolerâncias Correlatas (Decrin): Avenida Barbacena, 288, bairro Barro Preto, Belo Horizonte/MG.
Demais municípios: Delegacia de Polícia Civil mais próxima