Um dos grandes problemas de Biden era a dificuldade de capitalizar politicamente sobre os dados positivos da economia, nomeadamente as baixas taxas de desemprego, e de dissociar-se dos dados negativos, nomeadamente a inflação
A desistência de Joe Biden de concorrer à reeleição em novembro próximo obrigou o Partido Democrata a encontrar um novo candidato à presidência dos Estados Unidos. De certa forma, a decisão de Biden foi uma surpresa, dado que, depois do atentado contra Donald Trump, a pressão para que desistisse de concorrer quase havia desaparecido nas fileiras do Partido Democrata. Dadas as dificuldades, a esta altura, de organizar novas eleições primárias competitivas para a escolha de um novo candidato, a escolha natural foi a atual vice-presidente Kamala Harris.
Kamala Harris beneficiou-se da teimosia de Biden, pois se tivesse havido uma eleição primária competitiva com Biden fora da disputa, dificilmente ela seria a candidata escolhida. Como afirmou Maquiavel, o príncipe precisa de sorte e virtude. Sorte ela já teve; é preciso saber se terá a virtude necessária para ganhar a eleição. Diante de um pleito vicioso alimentado pelo medo e aversão, Kamala precisa oferecer esperança para os Estados Unidos.
Filha de imigrantes – pai jamaicano e mãe indiana – Kamala Harris fez uma carreira política de sucesso na California, onde ocupou o cargo de procuradora geral antes de ser eleita senadora e vice-presidente. Kamala tem, a seu favor, o fato de ser relativamente jovem tanto em relação a Biden quanto em relação a Trump. Também pode lhe trazer novos apoios o fato de ser mulher e ser negra.
No espectro político é considerada uma política de centro em seu estado, a California. Mas como afirmou a Economist (27/7) “Um centrista da costa oeste não é um centrista nos estados decisivos que ela deve vencer”. É considerada mais à esquerda do que Biden, mas não a ponto de alarmar a elite conservadora norte-americana. Na verdade, tanto o Partido Democrata quanto o Partido Republicano partilham de visões comuns em temas realmente importantes para o establishment norte-americano, nomeadamente no ponto que mais lhes interessa que é a política externa.
A China é o saco de pancadas preferido tanto de democratas quanto de republicanos. Caso eleita, certamente não haverá mudanças substanciais na política externa dos Estados Unidos em relação a temas relevantes como o apoio americano para Ucrânia, Israel e Taiwan, bem como à política de confrontação com a China e a Rússia.
Pesquisas realizadas logo após sua confirmação como a nova candidata do Partido Democrata indicam que a vantagem anterior de Donald Trump em relação a Biden diminuiu. Algumas, inclusive, já apontam Kamala à frente. A vantagem de Trump que vinha sendo mantida há meses em relação a Biden, reforçada pela tentativa frustrada de assassinato, aparentemente desapareceu. No show midiático que são as eleições nos Estados Unidos, a renúncia de Biden e a indicação de Kamala para substituí-lo ofuscaram completamente o episódio do atentado frustrado contra Trump, que desapareceu do noticiário e, aparentemente, da cabeça dos eleitores.
É preciso, contudo, estar atento às peculiaridades do sistema eleitoral norte-americano. Como afirmou Joe Ravitch em artigo na Economist (22/7/2024), “Mais importante ainda, o estranho sistema eleitoral da América significa que a maioria dos resultados da votação estadual são predeterminados e os resultados das eleições dependerão de um pequeno número de estados indecisos, como Michigan, Pensilvânia, Arizona, Geórgia e Wisconsin. A chave para os democratas é nomear uma chapa que possa conquistar eleitores independentes e insatisfeitos nesses estados, não ganhar mais votos nos estados azuis profundos nas costas. Uma chapa nova e de alta energia contrastará fortemente com um plutocrata envelhecido cujas posições do partido sobre o aborto e uma série de outras questões substantivas são profundamente impopulares”.
Nesse sentido, a escolha do candidato a vice-presidente em cada uma das chapas é importante. No caso da chapa democrata, muitos defendiam que o candidato a vice deveria sair de um desses “estados-pêndulo”, o que apontava para Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, Mark Kelly, senador do Arizona, Tony Evers, governador de Wisconsin ou a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer. A escolha, contudo, recaiu sobre o governador de Minnesota, Tim Walz.
A escolha de Tim Walz foi elogiada pela maioria dos comentaristas, embora haja dúvidas se ajudará tanto Kamala eleitoralmente. Segundo Perry Bacon Jr. (Washington Post), “O governador de Minnesota, Tim Walz, é uma ótima escolha para vice na chapa de Kamala Harris, trazendo sagacidade legislativa e política e uma nova perspectiva para a composição. O único aspecto negativo: não está claro se esse movimento ajudará Harris tanto assim eleitoralmente.” (Estadão, 06/08/2024).
Ainda segundo Bacon Jr., “Walz também trará uma nova perspectiva tanto à campanha quanto à Casa Branca se ele e Harris forem eleitos. Em um partido dominado por advogados e moradores de áreas urbanas, o governador de Minnesota vem das cidades pequenas de Nebraska e foi professor de estudos sociais para alunos do ensino médio e treinador de futebol americano antes de entrar na política”. O argumento a favor da escolha de Walz em detrimento dos outros candidatos foi de que há pouca evidência de que candidatos à vice-presidência façam muita diferença, mesmo em seus Estados-natais. Mas em uma eleição tão apertada com esta, pequenas diferenças podem ser decisivas.
Um dos grandes problemas de Biden, afora a desconfiança do eleitorado sobre sua capacidade física e mental de levar a bom termo um segundo mandato que iniciaria já aos 81 anos, era a dificuldade de capitalizar politicamente sobre os dados positivos da economia, nomeadamente as baixas taxas de desemprego, e de dissociar-se dos dados negativos, nomeadamente a inflação. Os preços nos Estados Unidos estão em média 20% acima dos níveis de quando Biden assumiu a presidência. E isso é um problema que as pessoas sentem todos os dias quando vão ao supermercado, o que tornou Biden um candidato impopular. A expectativa dos estrategistas de campanha do Partido Democrata é que seja mais fácil para Kamala se dissociar dos problemas econômicos.
Segundo Colby Smith e James Politi, do Financial Times, “A provável candidata democrata já está adotando os aspectos mais populares dos planos e conquistas legislativas de Joe Biden e tentando deixar em evidência as diferenças em relação às propostas de Trump. Por outro lado, a candidata espera ser menos afetada do que o atual presidente pela crise gerada pelo elevado custo de vida nos últimos anos.” (Valor, 28/7/2024).
Ainda segundo a matéria, “Kamala Harris usou a primeira semana de campanha eleitoral para apresentar o plano econômico voltado à classe média americana que colocará em prática se vencer o republicano Donald Trump na eleição presidencial dos EUA, em novembro. “O fortalecimento da classe média é o objetivo que definirá minha presidência”, disse a candidata a uma multidão entusiasmada de eleitores no ginásio de uma escola em Wisconsin, na terça-feira. “Mas Donald Trump quer fazer o país de vocês andar para trás.”
Já na campanha de Trump, a escolha do jovem senador por Ohio J.D. Vance para candidato a vice-presidente, não parece ter agregado muito à sua campanha. Ao contrário, reforça alguns aspectos negativos. Conforme observa reportagem da Folha de S. Paulo (15/7/2024), “Vance tem opiniões que devem dificultar o apelo de Trump a um eleitorado menos extremista: enquanto o ex-presidente defende uma postura moderada em relação ao aborto, por exemplo, o senador já apoiou a proibição adotada no Texas do procedimento e criticou exceções feitas para casos de estupro e incesto. Além disso, ele é a favor de uma lei federal contra a interrupção da gravidez — hoje, graças a uma decisão da Suprema Corte (com votos favoráveis dos três juízes indicados por Trump), cada estado do país decide se proíbe o aborto ou não. Recentemente, Vance tem suavizado seu discurso para se aproximar de Trump”.