“O Jô Soares esperou os 100.000 para se inserir no contexto do Pasquim. É válido”, dizia o Sig, o ratinho do Jaguar que era o símbolo do Pasquim, na célebre vigésima edição do jornal, que teve tiragem de 100 mil exemplares.
O Pasquim número 20 saiu em novembro de 1969 – quase um ano após a edição do AI-5 – com uma também célebre crônica de Jô Soares, “A cama”, que Come Ananás reproduz mais abaixo, nesta sexta-feira, 5 – esta sexta que não sextou, porque é o dia da morte do Jô.
O texto “A Cama” rendeu a Jô Soares um processo movido pelo então ministro da Justiça da Ditadura, Alfredo Buzaid. Acusado de obscenidade, Jô foi absolvido e devia sua absolvição ao depoimento em seu favor feito por Carlos Drummond de Andrade.
Dizia o depoimento, que Jô guardava emoldurado na parede:
“Considero Jô Soares um dos maiores humoristas brasileiros, sob diferentes formas de expressão. Suas criações são de molde a situá-lo entre os artistas contemporâneos de categoria internacional”.
“Não posso julgá-lo um pornógrafo ou um corruptor da juventude. É antes, e acima de tudo, um humorista que se permite discorrer com graça e malícia dosada, sem infringir nenhum código de moral absoluta, que de resto não existe, sobre temas de todos os tempos e sociedades”.
Agora sim, uma indecência
Uma curiosidade: a figura do famigerado impetrante do processo contra Jô Soares na Ditadura “contribuiu” decisivamente para a Carta aos Brasileiros de 1977, manifesto de repúdio à Ditadura e de exaltação do “Estado de Direito Já”.
É que a ideia da carta nasceu da inconformidade dos advogados José Carlos Dias, Flávio Bierrenbach e Almino Afonso, todos ex-alunos de Direito da USP, com o fato de que o senhor das celebrações dos 150 anos da faculdade do Largo de São Francisco seria um ex-ministro de Médici e defensor do AI-5: Alfredo Buzaid, então diretor da escola.
Isto sim, uma indecência.
Hoje, agora mesmo, neste adiantado do retrocesso brasileiro em plena terceira década do século XXI, a “Carta aos Brasileiros” está sendo reeditada como resposta às movimentações golpistas de Jair Bolsonaro e de setores das Forças Armadas, grandes corruptores do Brasil.
A cama
Jô Soares
Muito tem sido feito e dito, embaixo, sobre e dentro da cama, mas pouca gente conhece realmente a origem e a história desse extraordinário objeto. A cama foi inventada em 1213 pelo famoso engenheiro italiano Américo Cama, passando a chamar-se “cama” em sua homenagem. Giorgio Cama era uma bicha notória da Idade Média, que tinha o hábito de só manter relações sexuais com pessoas célebres – daí o ditado “crie fama e deite-se no Cama” – e por isso mesmo resolveu criar um campo de ação mais propício aos seus debates amorosos. Da primeira vez que Américo Cama apresentou a sua invenção ao rei, o então famigerado Luigi, o Louco, assim chamado exatamente pela sua mania de ser rei apesar de ser mulher e mãe de cinco filhos; este achou que o invento era absolutamente imoral e mandou-o de volta dizendo a frase que o tornaria célebre: “Américo, go home”. Tudo teria terminado aí, se Américo não tivesse descoberto totalmente por acaso uma outra utilidade para o seu invento: percebeu que descontraindo totalmente o corpo, em posição horizontal sobre a cama, conseguia quase que imediatamenteo conciliar o sono. Assim, a cama, desviada do seu primeiro objetivo, passou a ser usada como dormitório. Sua primeira vítima foi ironicamente o seu próprio criador, morto dentro dela (fenômeno que se repetiria mais tarde com o doutor Guillotin, inventor da lâmina interminável, que morreu fazendo a barba).
Voltemos para a cama. Os anos foram passando, e a verdadeira função sexual da cama caiu no esquecimento das noites medievais. Aqueles que, de princípio, ainda tentaram profaná-la com suas vergonhosas práticas homossexuais, foram exterminados de uma só vez num massacre ordenado pelo rei e que ficou conhecido como a “Noite do Bichicídio”. Só muito mais tarde, a cama voltaria ser utilizada como instrumento de prazer. Levada subrepticiamente (isto é, embaixo de répteis) para a França por um discípulo de Cama, Luchino Fornicante, pouco a pouco ela foi conseguindo o seu lugar na sociedade. O dito discípulo, vendo-se em fragilíssima situação financeira, começou a alugá-la para casais de sexo oposto (homem-mulher), abrindo assim um novo campo para a cama. Foi a partir de então que ela fez verdadeiramente suas provas, passando por experiências de acoplamento jamais suspeitadas pela limitada imaginação de seu inventor. Algumas frequentadoras mais assíduas conseguiram inclusive ter nela quatro ou cinco filhos.
Passaram-se, no entanto, muitos séculos antes que a cama tivesse total aceitação popular. O fato só se deu sob Luis XIV, chamado “Roi Soleil” (Rei Sol) precisamente por ser rei e todo mundo querer puxar-lhe o saco. Num dia de transcendente inspiração, Luis XIV levantou-se da sua poltrona Luis XV ainda não inventada e, aproximando-se da sacada do palácio, gritou ao povo que se comprimia para saudá-lo: “L’État c’est moi!”, ou seja “o estilo é homem”. Tamanho era o seu magnetismo pessoal que a multidão ficou paralisada, olhando para ele de olhos esbugalhados. Talvez o fato de estar sem calças na ocasião também tenha contribuído um pouco. Logo depois com sua força descomunal, levantou a cama sobre a cabeça enquanto dizia: “Je n’aime pas les raviólis, mas je suis ravi au lit”. O que em português não quer dizer absolutamente nada. A partir de então, a cama ficou sendo definitivamente usada com total liberdade. Alguns estudiosos insistem em dizer que antes disso ela já era sexualmente usada, afirmação que pode ser facilmente desmentida, bastando para isso consultar alguns compêndios especializados no assunto como, por exemplo, “Le sacanage au Moyen Age”, de François L’amour. Como se vê, parece que, pelo menos no mundo ocidental, coube aos franceses a divulgação da cama, mas no oriente, um comerciante de incrível talento, o hindu Shri Sutra, registrava em seu nome o formidável invento, que passou desde então a ser conhecido como Cama Sutra, mais tarde sofisticado para Kama-Sutra.