Com 64 mortos, ação nas favelas do Alemão e da Penha reacende o debate sobre violência de Estado, racismo estrutural e ausência de políticas sociais.

A megaoperação policial realizada nesta terça-feira (28) nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, deixou pelo menos 64 mortos, incluindo quatro policiais, e 81 presos. A ação, considerada a mais letal da história do estado, mobilizou 2.500 agentes e paralisou boa parte da cidade, com escolas fechadas, bloqueios em vias e moradores enclausurados em casa.
A ofensiva faz parte da chamada “Operação Contenção”, programa permanente do governo bolsonarista de Cláudio Castro (PL) para conter a expansão do Comando Vermelho (CV). No entanto, as imagens que circularam nas redes sociais mostraram helicópteros atirando de cima, blindados destruindo ruas e famílias aterrorizadas dentro de suas casas. Para muitos parlamentares e especialistas, a operação é mais um capítulo de uma política de segurança centrada na letalidade e na espetacularização da violência, um padrão histórico de violência que não enfrenta as raízes do problema.
“Tragédia nas favelas”, denuncia Jandira Feghali
A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) criticou a diferença de tratamento das forças de segurança conforme o território onde atuam.
“Quando precisam cumprir mandados de prisão nos endereços elegantes do andar de cima, as forças policiais agem com cuidado. Mas nas favelas, o resultado é o que vemos: população aterrorizada, sem poder sair para trabalhar e estudar, num cenário que lembra uma guerra – covarde, como todas as guerras”, afirmou.
Para Jandira, a política de segurança do governador Cláudio Castro (PL) é “uma tragédia permanente” que transforma as comunidades em zonas de exceção, onde os direitos constitucionais são suspensos.
“Os moradores dos complexos da Penha, do Alemão e de todas as comunidades do Rio merecem respeito”, concluiu.
“Insegurança institucionalizada”, afirma Danieli Balbi
A deputada estadual Danieli Balbi (PCdoB-RJ) classificou a operação como “ineficiente e desastrosa”, argumentando que o Estado “surrupia direitos fundamentais” em nome de uma guerra que atinge os mais pobres.
“A operação instaura o caos e o medo e certamente não vai resolver o problema da insegurança pública. O governo do estado precisa prestar contas: quem são os mortos, os sobreviventes e os mandos que legitimam essa matança?”, questionou.
Balbi, militante antirracista, afirmou que o espetáculo da morte substitui políticas públicas reais:
“Sob a tutela de Cláudio Castro, prevalece o espetáculo da morte. A cada operação, um fuzil, um corpo, um silêncio cúmplice. A letalidade protege a narrativa de que ‘algo está sendo feito’, enquanto falha em garantir vida, educação, saúde e emprego.”
Crítica à tentativa de culpar o governo federal
O governador Cláudio Castro tentou dividir a responsabilidade, afirmando que o “poder bélico dos criminosos está sendo financiado via lavagem de dinheiro” e que as forças de segurança do Rio estão “sozinhas” nessa guerra.
A fala provocou reação imediata no Congresso. O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) rebateu o governador, acusando-o de “oportunismo político”.
“Querer empurrar essa conta para o governo federal é muita cara de pau. Castro deveria explicar por que faz oposição à PEC da Segurança, proposta por Lula. É puro oportunismo”, disse.
“Letalidade é pirotecnia que não resolve”, diz especialista
Para o advogado e pesquisador José Carlos Pires, membro da coordenação da Associação de Advogados pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) e autor de obras sobre segurança pública, as chamadas “megaoperações” produzem impacto midiático, mas nenhum efeito duradouro.
“A operação vem, deixa um rastro de mortos e feridos, e depois tudo volta a ser como antes. A vida de violência e de ocupação nos territórios continua. Cria-se uma pirotecnia que ceifa vidas, inclusive de inocentes, e, dias depois, a realidade retorna”, afirmou Pires.
O especialista ressaltou que o problema da criminalidade urbana não se resolve com confrontos, mas com ações permanentes e integradas do Estado.
“A operação paralisa bairros inteiros — escolas, comércios, academias, tudo fica parado. O medo prevalece, tanto da atuação policial quanto do crime organizado. Sem políticas sociais e econômicas, o crime volta a dominar os territórios”, alertou.
O contraponto: a inteligência contra a letalidade
José Carlos Pires destacou ainda o contraste entre as ações no Rio e a recente operação da Polícia Federal em São Paulo, que desarticulou a estrutura financeira do crime organizado sem feridos nem mortos.
“A PF atacou as finanças do crime com tecnologia, investigação e inteligência. O resultado foi muito mais eficiente e civilizado. No Rio, a opção é sempre pela letalidade”, comparou.
Segundo ele, a insistência em estratégias de confronto direto reflete uma ausência de política pública coordenada, em que a polícia atua isoladamente, sem o suporte de políticas de educação, cultura, saúde e geração de emprego.
Governador em contradição e disputa política

O especialista também criticou as declarações do governador Cláudio Castro (PL), que afirmou que as forças do Rio estão “sozinhas” e pediram ajuda federal. Para Pires, a fala é contraditória e politicamente calculada.
“O governador tenta transferir a responsabilidade ao governo federal, mas ao mesmo tempo se opõe à PEC da Segurança Pública, que busca integrar as forças dos estados e da União. É uma jogada de marketing eleitoral”, afirmou.
Segundo Pires, a solução real exige cooperação entre municípios, estados e União, num processo planejado e contínuo.
“Segurança pública não se faz com uma megaoperação, mas com presença constante do Estado e com políticas estruturantes”, completou.
Letalidade como rotina
O saldo da Operação Contenção — 64 mortos e bairros inteiros paralisados — reforça o diagnóstico de que o modelo de segurança pública fluminense está esgotado. Em vez de reduzir o poder das facções, as ações violentas reproduzem ciclos de medo e desconfiança entre Estado e comunidades.
Para Pires, a militarização da segurança e a ausência de políticas sociais mantêm o Rio em um “estado de guerra permanente”, onde a morte substitui a política.
“Enquanto o Estado não tratar a segurança como um direito e não como uma batalha, viveremos essa rotina de operações espetaculares e resultados pífios”, concluiu.
Uma política que reproduz o medo
A chamada “Operação Contenção”, criada pelo governo do estado como política permanente de combate ao tráfico, tornou-se símbolo de uma segurança pública baseada em confronto, sem resultados sustentáveis.
Especialistas e entidades de direitos humanos apontam que, desde 2019, o Rio de Janeiro tem assistido a uma militarização crescente da vida urbana, onde a morte é tratada como indicador de sucesso.
A operação desta semana, com 64 mortos em um único dia, revela a persistência de um modelo que fracassa em seu propósito principal: garantir segurança sem destruir vidas.
Com críticas de parlamentares e especialistas, a megaoperação do Rio escancara o esgotamento da política de segurança baseada na letalidade e no abandono das periferias.