Lei é a primeira em Minas Gerais a reconhecer um ente não-humano como sujeito de direitos
Em uma conquista histórica para o Norte de Minas Gerais, a Câmara Municipal de Porteirinha aprovou por unanimidade, no dia 2 de abril, o Projeto de Lei (PL) 01/2024, que reconhece e protege os direitos do rio Mosquito. A aprovação representa um avanço legislativo na validação dos direitos de um ente não-humano, em uma iniciativa pioneira no estado.
No Brasil, o rio Laje, em Guajará-Mirim (RO), foi o primeiro do país a ser reconhecido como um ente vivo e sujeito de direitos. A lei garante a existência do rio e de todos os outros seres, humanos e não humanos, que vivem e estão presentes em suas águas. Seguindo similar proteção e garantia de direitos, está a Lei nº 2251/2024, aprovada em Porteirinha.
Em seu Artigo 1º, a nova legislação determina que ficam “reconhecidos os direitos intrínsecos do rio Mosquito e sujeito de direitos, e de todos os outros corpos d`água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado, integrado e interdependente no âmbito do Município de Porteirinha.”
Por se tratar de uma região com forte presença da agricultura familiar, o rio Mosquito tem um papel importante na garantia da sociobiodiversidade. Mais do que isso, é essencial para a existência de todas as formas de vida, promovendo geração de renda, segurança alimentar e nutricional, turismo de base comunitária, além da urgente conservação do meio ambiente.
A nova legislação em torno da proteção do rio Mosquito foi construída de forma colaborativa, a partir de uma intensa mobilização popular em defesa da recuperação e proteção do rio, com participação ativa de famílias agricultoras, organizações sociais e lideranças comunitárias.
O projeto também contou com a ajuda de parceiros, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, a Associação Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (ACEBEV), a Articulação no Semiárido Mineiro (ASA Minas), a Cáritas Regional de Minas Gerais e a Cáritas Arquidiocesana de Montes Claros, que organizaram a campanha “Todos pelo rio Mosquito”.
O que diz a lei?
A lei garante a existência do rio e de todos os outros seres, humanos e não humanos, que vivem e estão presentes em suas águas. Entre os direitos do Rio Mosquito e outros entes relacionados, a lei reconhece a importância de “manter seu fluxo natural e em quantidade suficiente para garantir a saúde do ecossistema; nutrir e ser nutrido pela mata ciliar e as florestas do entorno e pela biodiversidade endêmica e existir com suas condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico.
O texto também reconhece o direito do rio de se inter-relacionar com os seres humanos por meio da identificação biocultural, de suas práticas espirituais, tradicionais, de lazer, da pesca artesanal, agroecológica, cultural e do Turismo de Base Comunitária”.
A nova legislação propõe ainda a criação de um Comitê Guardião do Rio Mosquito, formado por representantes das comunidades e de entidades do município.
Ente de direitos: garantia de proteção do rio Mosquito
O rio Mosquito nasce no município de Serranópolis de Minas, cidade de pouco mais de 4 mil habitantes ao norte do estado, sobre a Serra do Espinhaço. Afluente dos rios Gorutuba e Pardo, ele parte de Serranópolis rumo a Porteirinha, município de 37 mil habitantes, e corta a cidade de oeste a leste, passando pela área central da cidade.
Há anos, a cidade se mobiliza em torno da recuperação da saúde do rio, além da preservação de sua nascente, despoluição de diversos trechos, cuidado com a vegetação e o meio ambiente que o circunda. De lá, as águas rumam para Nova Porteirinha, município de 6 mil habitantes, e seguem seu caminho até encontrar com o rio Pardo.
Irmã Mônica de Barros, da Congregação Filhas de Jesus, é fundadora da Associação Casa de Ervas Barranco da Esperança e Vida (Acebev), uma das organizações que atuam na luta pela preservação do rio Mosquito, e destaca a íntima relação das comunidades com o rio.
“Em seu leito a vida passa constantemente. Na sua margem tem toda uma cabeleira verde de vida, de medicamentos, de coisas maravilhosas que o Pai Deus deixou. As comunidades que são banhadas por esse rio têm uma imensa gratidão, um imenso respeito e um quase infinito cuidado. As margens são a segurança que o rio e as comunidades têm para sobreviver.”
Prevenção de enchentes
Uma das preocupações que fizeram com que a população se mobilizasse em função da proteção do rio Mosquito são as enchentes, que já atingiram Serranópolis e Porteirinha em várias ocasiões. Devido ao intenso assoreamento, junto às características de relevo da região, o rio não comporta os períodos de cheia.
Como resultado, ruas, casas e comércios são invadidos pela água e moradores precisam deixar seus endereços às pressas. Na última enchente, ocorrida em março de 2024, mais de 100 casas ficaram alagadas em Porteirinha.
“Na etapa de construção de ações de incidência política, durante um encontro em uma das comunidades atingidas pela cheia do rio Mosquito, os moradores decidiram pela revitalização ou, como disseram, pelo cuidado com a ‘saúde do Rio’. Como ação estratégica e, dentro da revitalização, foi apontada a necessidade de construção de uma lei que reconhecesse os direitos e protegesse o rio Mosquito.”, explica Aldinei Leão, agente Cáritas e assessor jurídico do Centro de Referência em Direitos Humanos do Norte de Minas (CRDH Norte), instituições que auxiliaram na mobilização dos moradores.
A luta continua
Sancionada no dia 15 de abril, a lei aguarda regulamentação para que seus efeitos práticos na proteção do rio sejam efetivados. Lideranças, movimentos sociais e as comunidades seguem mobilizados.
“A luta não está encerrada, simplesmente a luta nos deu mais um sinal de vida. Não basta você ter uma lei muito bonita e ela não ser respeitada, não ser aplicada. Temos que fazer essa lei valer porque ela é, agora, um instrumento de proteção, não só do rio, mas de tudo que o envolve.”, afirma Irmã Mônica.
Debate no Congresso Nacional
Como próximos passos, os representantes das mobilizações planejam encaminhar a pauta do rio Mosquito ao Congresso Nacional, como parte de uma das ações estratégicas da Articulação pelos Direitos da Natureza.
Composta por organizações da sociedade civil, povos indígenas e comunidades tradicionais, a articulação atua na construção de políticas que consagram direitos à natureza.
Nesse sentido, foi proposta a realização de uma Audiência Pública para debater a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Direitos da Natureza, que deve acontecer em 5 de junho, Dia Nacional do Meio Ambiente.
(Brasil de Fato/MG)