“Precisamos tirar as PMs desse buraco. E o bolsonarismo usa de todos os instrumentos para instalar o caos” (Governo de SP)
Coronel da reserva da PM Glauco Carvalho defende punição de colega que convocou para ato do dia 7 e diz que afastamento é pouco para ‘conter balbúrdia’
O coronel Glauco Carvalho, de 55 anos, disse que o afastamento do coronel Aleksander Lacerda não basta para resolver o caso na PM paulista. “Ele é meu amigo e foi meu aluno no Curso Superior de Polícia. A despeito disso, fico com a lei e com os princípios de minha instituição. Ele tem de ser punido sob o ponto de vista administrativo e sob o ponto de vista penal militar.” Lacerda foi retirado do cargo na segunda-feira, dia 23, depois de convocar os colegas para o ato bolsonarista de 7 de Setembro, criticar ministros do Supremo Tribunal Federal e chamar o governador João Doria (PSDB) de “cepa indiana”. Carvalho, que chefiou o Comando de Policiamento da Capital e passou para a reserva há seis anos. Eis sua entrevista.
O que significa para a Polícia Militar um caso como o do coronel Aleksander?
É preciso diferenciar oficial da ativa do oficial da reserva. O da reserva, até certos limites, pode se manifestar, ter vida partidária. O da ativa tem limitações severas em decorrência do papel na sociedade e por ele portar armas. Tratando-se de um oficial da ativa, o fato é de gravidade extrema. Quero salientar que o coronel Aleksander é meu amigo. Foi meu aluno no Curso Superior de Polícia; é um bom oficial. A despeito disso, fico com a lei, com os princípios e os valores da instituição. Ele tem de ser severamente punido sob o ponto de vista administrativo e sob o ponto de vista penal-militar. Se não, vamos instalar a balbúrdia na instituição. O Brasil está de ponta-cabeça. É surreal. E vejo coronéis querendo contemporizar… A tropa precisa ver que o bumbo bate no pé direito. O procedimento administrativo tem de ser célere. Fosse em outras épocas, ele estaria preso hoje ou amanhã para dar exemplo para a tropa.
Afastar não é suficiente?
Para uma instituição que se diz militar, o afastamento é punição muito tênue, quase insubsistente, pelo menos para nós, militares acostumados à vida da caserna, de regras duras. Se o comandante do CPI-7 pode ser apenas afastado, o cabo comandante de uma cidade de 5 mil habitantes também pode e não deve ser punido com sanção administrativa ou com a abertura de IPM. Se ficar só nisso, abrimos a possibilidade de ações de indisciplina se alastrarem por toda instituição. E vou além: a punição dele tem de ser pública. Nessas circunstância, apesar de meu apreço ao Aleksander, a punição tem de ser pública para que, do soldado mais de recruta ao coronel, vejam que a PM não tolera esse tipo de atitude. A democracia não implica em libertinagem, em falar o que você pensa e acha sobre autoridades constituídas ocupando uma das funções mais importantes que a instituição tem: o comando de área de grandes efetivos.
Como tem sido a repercussão entre seus colegas sobre o caso?
Há segmentos que já não têm apreço pelo regramentos da instituição militar e defendem abertamente as manifestações de qualquer ordem. E outros, os mais próximos a mim, que entendem que houve excesso por parte do Aleksander, que ele deve sofrer as consequências de seu ato. Eu conheço o coronel (Fernando) Alencar (comandante-geral da PM) e tenho absoluta confiança de que ele tomará as medidas mais apropriadas para manter a integridade da instituição. No País de Macunaíma é difícil falar em isenção e imparcialidade, pois as pessoas não estão acostumadas ao cumprimento da lei e à subserviência a princípios e o respeito aos valores, mas tenho convicção plena de que o coronel Alencar manterá a integralidade da instituição.
Em toda a sua carreira, o sr. testemunhou algum caso assim?
Fiquei 35 anos na ativa e estou há seis anos na reserva e nunca vi um coronel fazer qualquer tipo de manifestação nesse sentido. É da tradição da Força Pública de São Paulo manter a sua legalidade. A esquerda em alguns momentos defendeu greves de PMs e, em algumas circunstâncias, defendeu ações ao arrepio do Código Penal Militar. Nesse momento, vemos como isso é perverso. O arrepio da lei pode se dar tanto para um lado quanto para outro. Tanto pode servir para fazer uma revolução proletária como podem servir para dar um golpe. A democracia tem esse caráter pedagógico.
Como o bolsonarismo se infiltrou na PM?
Existe um descontentamento grande nos últimos anos em relação ao PSDB, assim como houve das Forças Armadas com o governo Lula. O descontentamento é legítimo e legal. O que não é legal é você pregar ações que fogem ao limite do legal e ao ordenamento jurídico, que podem colocar em xeque o estado democrático de direito. Em que pese qualquer insatisfação em relação ao governador João Doria, essa insatisfação não pode de forma alguma ser manifestada. Existe o voto para as pessoas manifestarem sua insatisfação e, se a maioria do povo optou por um candidato, nós temos de nos submeter a ele. Durante minha vida eu fui submetido a governos com os quais eu não concordava, mas isso não implica a defesa de golpes ou pegar em armas para a derrubada desses governos. Além disso, nos últimos 40 anos uma parcela da esquerda “humilhou” as Polícias Militares, pois atribuíram a elas todas as mazelas pelas quais o País passa. Isso é uma injustiça. Ser um militar de polícia passou a ser, de alguma maneira, motivo de vergonha e, num determinado momento, veio uma pessoa que disse: ‘Vocês são importantes, vocês têm um papel social importante’. E essa pessoa acabou angariando a confiança de um segmento majoritário nas PMs. Chegamos a um momento em que a insatisfação decantou e ele (Jair Bolsonaro) se tornou o líder de uma causa. O bolsonarismo se alastrou. Tenho amigos que se tornaram defensores do presidente. É preciso entender o que aconteceu. Não basta só criticar as Polícias Militares. Precisamos tirar as PMs desse buraco. E o bolsonarismo usa de todos os instrumentos para instalar o caos. Veja o Eduardo Bolsonaro. Ele usou o fato de PM ter o pior salário do Brasil e o uso de câmeras pelos policiais para que os PMs se insurjam contra o Doria. Ele usa um instrumento que vai mudar a PM em dez anos – o uso de câmeras – para criar clima de insubordinação. O bolsonarismo não tem institucionalidade, ele não tem limites, e tenta destruir todos os valores da instituição. É o que tem de mais indecente na vida pública do País.
O coronel Aleksander alegava liberdade de expressão para publicar suas críticas. O que é essa liberdade para o civil e para o militar? Quais os limites da fronteira entre a crítica, a discordância leal, e a ilegalidade?
É simples. E isso vale para todas as carreiras de Estado. A lei e os regulamentos administrativos de todas as organizações estabelecem os limites. Há limites éticos na diplomacia, na Polícia Civil e, de forma muita mais acentuada, nas instituições militares. Elas estão perdendo a sua natureza mais intrínseca. O limite que o PM pode exercer em matéria político-eleitoral e partidária é zero. Ele não pode critica a política do Doria, como a do Lula e da Bolsonaro. Isso também vale para Bolsonaro. Quem é da ativa não deve se manifestar porque eles são autoridades constituídas, legal e democraticamente eleitas. O Brasil perdeu seus limites e valores. O que se aplica ao Lula também se aplica ao Bolsonaro. Tem de haver respeito das instituições a essas autoridades. Eu posso falar porque estou na reserva, mas passei 35 anos sem falar nada. O limite é o limite em que as instituições se balizam. O grande problema que temos é que temos um presidente que, para permanecer no poder, prega a desinstitucionalização das organizações do estado, como as Polícias Militares, as Forças Armadas, o Ministério Público e a Justiça.
O Estado de São Paulo