Terno de Folia de Reis de Alto Belo é um dos mais importantes de Minas Gerais: mais de 40 anos. (MANOEL FREITAS)

Considerada uma das últimas trincheiras da cultura de resistência do Brasil, começam na noite de Natal os festejos que celebram o nascimento de Jesus e a devoção a Santos Reis

Violeiros e violas caipiras se confundem com a própria história dos 41 anos da Folia de Reis de São José de Alto Belo, distrito de Bocaiúva, conhecida nacionalmente por ser terra natal do ex-vice-presidente da República José Maria Alkmin e do sociólogo Betinho, “o irmão do Henfil”. O Terno de Folia, considerado um dos mais autênticos de Minas Gerais, foi idealizado por outro bocaiuvense ilustre, o pesquisador, historiador, tocador e compositor Téo Azevedo, filho e neto de músicos, na atualidade o autor brasileiro vivo com maior número de músicas gravadas, ganhador do Grammy Latino.

Folia de Reis ou Reisado, que chegou ao Brasil junto com os portugueses no período de catequese e colonização, é a festa que comemora e louva os três Reis Magos, Gaspar, Belchior e Baltazar, a partir do instante em que recebem o aviso do nascimento do Messias, até a hora em que encontram o Deus-menino na lapinha. Os festejos na Igreja de São José de Alto Belo, que têm início à meia-noite do dia 24 de dezembro

 

Dia de Natal e prosseguem até o dia cinco de janeiro, representando o tempo de andança dos Reis, embalados pelas cantorias e o som da viola caipira, pandeiro, acordeons, violões, cavaquinho, reco-reco, caixa, bumbo e rabeca, instrumento de arco precursor do violino.

À Festa da Folia de Reis de Alto Belo, que chega a sua 41ª edição nos dias 13,14 e 15 de janeiro de 2023, considerada uma das últimas trincheiras da música de raiz do Brasil com “S”, já se aliaram grandes promessas e artistas consagrados mundialmente. Além disso, o distrito, distante 35 km de Bocaiúva, chama atenção pela produção de grande número de artistas populares, como rabequeiros e mestres da viola caipira. Na verdade, uma autêntica escola de viola, graças à genialidade de Téo Azevedo e do talento de consagrados luthiers, artesões do sertão que concebem com suas habilidades instrumentos musicais de cordas, como Tozinho Pimenta, Moisés Pimenta, João de Bichinho e o saudoso Sinval da Gameleira.

Folia em Alto Belo atrai anualmente milhares de visitantes

Além da sonoridade da mais autêntica música brasileira, a Festa de São José de Alto Belo atrai grande número de devotos de Santos Reis e visitantes por premiar os melhores mentirosos, imitadores, contadores de causos, bem como o maior roedor de pequi. Como se não bastasse, outras atrações alimentam o mundo encantado da criançada: as corridas de carrinho de mão e cavalo de pau; uma festividade única, que nos faz plagiar o jornalista Francisco de Castro, para quem “é no sertão que vive a alma brasileira”.

Cerimônia popular de vida longa, com programação que mistura palco e plateia em um mesmo cenário, onde os papéis se confundem, tão grande é a participação dos moradores e visitantes. Nesses dias de cantorias, os participantes do reisado de Alto Belo, a partir do Natal, visitam casas de católicos, de porta em porta, lembrando a viagem dos Reis Magos para levar ao Menino Jesus os presentes de ouro, incenso e mirra, entoando principalmente “Deus te salve casa santa”.

Após seis de janeiro, retoma a pacata rotina de povoado onde nasce o Rio Verde Grande, que deságua no Rio São Francisco, pausa, ritual de preparação do Terno de Folia para os três dias da Festa de São José de Alto Belo, que tem contribuído ao longo dos anos para a criação na comunidade de uma cultura com marcante folclore religioso. Isso, quando crianças e jovens de Alto Belo se transformam, durante a exaltação ao Natal, em estrelas do espetáculo, com a apresentação dos Grupos Folclóricos Pastorinhas do Menino Jesus e Calanguê, que tem seu ponto alto na Dança Grande Sertão Veredas, obra de Guimarães Rosa.

Era uma vez…
Para falar sobre os 41 anos da Folia de Reis de São José de Alto Belo, seu idealizador Teófilo Azevedo Filho, o Téo Azevedo falou com O NORTE na sexta-feira (16). Explicou que “a festa foi criada para reavivar o terno de folia antigo que veio do Vale do Jequitinhonha, herança do meu avô, do meu pai”. Lembrou que “na verdade, a idéia foi de um rapazinho na época, com 12 para 13 anos, o Antônio Divino da Cruz, conhecido como Tony Agreste, que juntamente com José Alves Magno, o Mazinho, me procuraram sugerindo a criação de um terno de Folia de Reis em Alto Belo’.

Da noite de Natal até o dia cinco de janeiro foliões visitam até 12 casas por dia

Téo relata que gostou da ideia “e falei que iria pesquisar, estudar e, depois de três meses, reuni com eles, e o nome escolhido foi uma homenagem a nossa terra”. Observa que, na época, o distrito não se chamava Alto Belo, e, sim, Engenheiro Pires e Albuquerque, gerente da antiga Central do Brasil, que tinha uma estação ferroviária em Alto Belo, “porque naquele tempo, na medida em que a linha férrea ia avançando, as comunidades recebiam o nome das estações, em homenagem aos seus engenheiros, porque os povoados e cidadezinhas iam surgindo na beira da linha do trem”.
Com emoção, recorda que, “naquele tempo, a Festa de São José de Alto Belo era feita na casa dos fazendeiros da região; a primeira na propriedade de Paulão, a segunda na casa de Seu Nestor e por aí afora; e quando a folia completou 10 anos, as casas e moradias não cabiam mais o povo, então optei por fazê-la na rua, com palco e tudo”. Revela que até chegou a doar “um terreno grande para fazer uma praça de eventos, mas entrou prefeito e saiu prefeito e ninguém deu bola, mas quem sabe um dia aparece um filho de Deus que faz a praça antes da gente bater as botinas, porque agora em julho de 2023 vou fazer 80 anos de idade”.

Grupo folclórico Calanguê e Pastorinhas do Menino Jesus ()

Segundo Téo Azevedo, “uma das coisas mais gostosas de minha vida é a Folia de Reis de Alto Belo, porque minha companheirada é muito bacana mesmo, com ela fazemos o giro, visitamos as casas à noite”. Lembra ser neto de cantador, filho de cantados e que na sua família “a corrente musical está no sangue de todos, graças a Deus”. Diz ter muita saudade dos companheiros que estão vivos e dos que se foram, “inclusive entre os que se foram o meu filho Alan Caster de Azevedo conhecido como Teozinho Azevedo; saudades de José Osmar, o Mazinho, Décio Rebequeiro, Augustão, Sinval da Gameleira, grande músico, Buchinha, o porta-bandeira, e por aí afora”.

O mestre Valdo
Na quarta-feira (14), O NORTE conversou com o tocador e cantor Antônio Carlos de Souza Gomes, o Valdo, há 20 anos mestre do Terno de Folia de Reis de Alto Belo. Lembrou que Téo Azevedo, além de idealizador e criador do terno, foi também seu mestre “até passar a função para mim”. Frisou que “desde criança sou folião de Reis, meu pai foi mestre de Reis por 33 anos, e, por incrível que pareça, com 14 anos eu tomei conta da folia do meu pai porque ele adoeceu”.

“A bem da verdade”, diz o folião, “penso que ser mestre é uma missão que a gente tem, porque ele tem que ter comando, o conhecimento da folia para conduzir do melhor modo, conferir se todos os instrumentos estão afiados, e, também, exercer liderança com o respeito de todos”. Assim como Téo Azevedo, o mestre Valdo disse ter muita saudade dos foliões que, ao longo desses 41 anos, “mudaram para o andar lá de cima, porque eram parceiros, foliões natos, uma família, então a gente se emociona quando fala dessas perdas, mas temos que tocar a vida pra frente, tocar na folia para sempre, até quando Deus nos permitir”.

* Manoel de Freitas é jornalista

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