O breaking surgiu em meados da década de 70 nos guetos de Nova Iorque e logo se espalhou pelo mundo – Fábio Piva/Reprodução
Apesar da pouca idade, além dos dois títulos, Itsa também traz na bagagem anos de experiência e dedicação
Amélia Gomes
Cria do Barreiro, região de Belo Horizonte, Itsa pratica breaking desde os 11 anos de idade. Hoje com 22, conquistou pela segunda vez consecutiva o Campeonato Nacional de Breaking, realizado no dia 3 de outubro.
Ao longo destes onze anos de carreira, integrou o grupo o Corpo, o Cirque du Soleil e agora em novembro desembarca na Polônia para representar o Brasil na Final Mundial da competição de dança.
Esporte é nova modalidade olímpica e Brasil ocupa lugar de destaque
O breaking surgiu em meados da década de 70 nos guetos de Nova Iorque e logo se espalhou pelo mundo. A dança é contemporânea de outras manifestações culturais urbanas como o hip hop e o rap e a partir de 2024 passa a integrar o quadro de esportes das Olimpíadas. O Brasil ocupa lugar de destaque na disputa internacional e nossos atletas, assim como aconteceu com o skate em 2021, são espelho para o mundo.
Para falar sobre a dança, o prêmio recém conquistado e contar sobre as dádivas e desafios da profissão, o Brasil de Fato conversou com Itsa. Na entrevista, Itsa, que se identifica como pessoa não binária, afirma que além da arte, também leva para os palcos do breaking reflexões sobre a sociedade e o papel que a cultura ocupa em nossas vidas.
Brasil de Fato – Com apenas 22 anos, você já tem dois prêmios nacionais de breaking, um currículo extenso e 11 anos de carreira. Conta pra gente como começou a sua relação com o breaking?
Eu comecei a dançar com 11 anos, depois que meu primo que já dançava se mudou para o lado da minha casa. Ele tinha um tablado de MDF e ele sempre colocava no quintal e ficava dançando. Um dia eu decidi pular o muro e pedir para ele me ensinar. E foi aí que tudo começou.
Ele me levou ao Centro Cultural Lindeia Regina e também para um programa chamado Escola Aberta. Desde então comecei a dançar e nunca mais parei. No Centro Cultural foi onde eu comecei a participar de batalhas de dança e outras competições de breaking. E aí não parei mais.
Participei de projetos sociais como o Valores de Minas e do projeto social do Corpo Cidadão. Com 17 anos eu entrei para uma companhia de dança de Belo Horizonte onde fiquei nove meses, depois eu dei aula em uma escola integrada durante um ano. Foi quando eu fiz a minha audição para participar do Cirque du Soleil.
Além da arte, Itsa também leva para os palcos do breaking reflexões sobre a sociedade
Então comecei a trabalhar com Soleil em 2018 e fiquei este ano todo viajando e me apresentando em vários shows por todo o mundo. Aí, por um acaso, em 2019 (e eu gosto muito de acaso) eu estava no intervalo de shows do Cirque. Era uma coisa muito rara de acontecer, a gente voltar para casa nos intervalos das turnês, e aí eu voltei e tinha a eliminatória regional do Red Bull aqui em Belo Horizonte.
Participei da regional e ganhei. Eu tive um outro intervalo bem na final nacional do Red Bull, que foi em São Paulo. Foi muito por acaso mesmo, porque isso era muito raro. E aí participei da final nacional. Eu tinha acabado de me recuperar de uma lesão e dancei com meu pé enfaixado. Acho importante falar isso, porque só foi possível dançar porque tive um acompanhamento psicológico e de fisioterapia do Cirque, depois de ter me machucado em um show. Esse suporte acabou me ajudando para eu me preparar para a final e ganhei a final nacional em 2019.
Eu já sofri discriminação, muita discriminação. É triste.
E foi uma surpresa e tanto representar o Brasil na final mundial na Índia. Foi uma experiência muito enriquecedora.
No início de 2020 eu voltei a fazer minhas turnês com o Cirque de Soleil e veio a pandemia. Eu que viajava muito, não ficava uma semana em casa, fiquei um ano inteiro em casa de novo. Foi uma sensação e tanto. E ainda teve toda dificuldade financeira porque o setor artístico ficou completamente quebrado. Então foi muito difícil mesmo. Graças a Deus eu tenho pai, mãe e irmãs que me ajudaram, que me acolheram.
Desde o início da pandemia o setor cultural tem sido um dos que mais sofreu com a crise econômica que se agravou. Somado a isso, a negligência do governo em prestar apoio ao setor, com a extrema demora para sancionar a Lei Aldir Blanc. Como você vê isso?
É uma vergonha, porque o nosso país é tão enriquecido culturalmente. É muito difícil para a gente ficar assistindo isso, sem poder agir de uma forma ou de outra. Parece que o sistema está trabalhando para que eu não consiga me sustentar e sobreviver. E eu tenho que ficar correndo para um trabalho ali outro aqui, e hora que eu vejo corta verba daqui, corta verba dali.
Olha o trabalho que foi a burocracia que foi para a gente conseguir levar a Aldir Blanc. Olha a espera que teve que acontecer. Eu vejo tantos amigos, tantas pessoas passarem pelo mesmo. É muito dolorido para a gente. Eu sou uma pessoa muito paciente, mas quando baixa essa revolta, essa indignação no meu coração, aí eu tenho que ser artista mesmo. Aí a gente tem que usar muita dessa ferramenta, para transformar isso em alguma coisa boa porque senão isso vai me corroendo. Isso vai me sucumbir.
Dediquei o troféu aos meus avós que perdi para a covid
Mas ainda assim a gente não pode deixar de falar, não pode deixar de falar que está errado. Está errado cortar a verba da cultura. Errado. Olha o tanto de esforço e de tempo que a cultura gastou para conseguir aprovar isso. Olha o tanto de vida que a pandemia tirou da gente. Olha o tanto de vida que a arte salvou na pandemia? Sabe. E o mesmo aconteceu por exemplo na educação.
E é por isso que nós temos que nos posicionar, porque se a gente não se posicionar vamos continuar sendo levados. Eles vão tirar um pedacinho aqui, um pedacinho ali, igual mineiro comendo pelas beiradas.
Ainda está caindo a ficha. Olha que chique, o Brasil de Fato me entrevistando?!
Eu mesma nessa pandemia, para conseguir sobreviver trabalhei em supermercado, de entregadora de aplicativo, trabalhei no que tinha. Apesar de ser muito doloroso para mim como artista um dia está sendo aplaudido num teatro grande para milhares de pessoas e no outro estar trabalhando numa área que não tem nada a ver com a nossa. Isso é muito doloroso mesmo. Mas a gente tem esse talento de se adaptar. Foi muito difícil para mim. Mas superei. A gente tem que olhar pra frente e continuar caminhando.
Itsa você venceu o campeonato nacional de breaking na categoria feminina e é uma pessoa que se considera não binária. E assim como em outros esportes e manifestações culturais, nós ainda vemos uma predominância masculina nestes espaços. Como você vê esses desafios?
A gente precisa aprender, mesmo que na marra, que esse espaço é para todos. Eu posso entrar nessa roda de dança, eu posso entrar nesse campeonato, eu posso se quiser inclusive entrar como jurado, DJ, produtor. Entende? Porque nós estamos acostumados a só ver homens nessas posições de superioridade. Geralmente homens héteros e brancos.
Mas sim isso tem que mudar. Tem que acabar. As Olimpíadas de Paris é um gancho para a gente puxar. Ela está colocando essa ideia de ser 50% masculino e 50% feminino. A gente tem que correr atrás do máximo e não deixar não deixar mesmo que tenhamos menos benefícios para as mulheres.
A gente precisa colocar as mulheres e as pessoas da comunidade LGBTQI+ nesses lugares. Agora é a vez de vocês gritarem, ocuparem e participem. Eu já sofri discriminação, muita discriminação. É triste.
O break já é uma dança visualmente falando masculinizada. Às vezes os gestos são muito sexistas, objetificando a mulher. Infelizmente é uma herança que a gente tem de toda essa cultura, que a gente ainda carrega. E o primeiro passo para resolver isso é percebendo ela. Eu estou num ambiente onde eu sou a única mulher? Onde eu sou a única pessoa não binária? Onde eu sou a única pessoa negra? Peraí. Por que só tem eu? Por que não tem ninguém igual a mim aqui?
O segundo passo é questionar as pessoas ao seu redor sobre isso também. E aí as coisas vão mudando. Até alguns anos atrás, uma mulher entrar numa roda de dança era uma coisa muito rara. E hoje em dia já está ficando mais comum. Então a gente precisa perceber e questionar a si mesmo e aos outros e estimular essa ideia de que todo mundo tem direito.
E tem outra batalha diária que é entender que a gente tem direito de estar nesses lugares. Eu me questionei muito quando eu estava no Cirque porque eu era uma das únicas pessoas que não tinha faculdade e a maioria das pessoas ao meu redor eram brancas e graduadas, vindas de países desenvolvidos. E aí eu me coloquei num lugar tão ruim nesse momento, pensando: “Nossa, como eu estou despreparado. Eu não mereço estar aqui”. Então até eu entender, que eu merecia sim, foi muita luta, muito sofrimento.
Como diz aquela frase do Emicida: “quantos Emicidas não caíram na vala para eu chegar aqui?”. Nosso país perde muito quanto a isso, porque a gente tende a não recepcionar as pessoas, a não dialogar e não entender as pessoas. A gente precisa dialogar mais, trocar mais, entender como é a minha vivência, de como é a sua vivência. Aí a gente pratica a cidadania. Aí a gente começa a visualizar um novo cenário, uma nova sociedade, que dialoga que cresce junto e que evolui.
Voltando a falar sobre as competições, como está toda a sua preparação e essa expectativa para a disputa mundial e também para as Olimpíadas?
Eu fui pra São Paulo com a cara de quem não queria nada. “Vou ver o que vai dar”. E aí graças a Deus eu recebi a passagem e hospedagem, porque não tinha condição mesmo nenhuma de ir. Dediquei o troféu aos meus avós que perdi para a covid.
E assim foi tanta coisa que aconteceu, que a gente vai esquecendo do valor que a gente tem, da nossa missão, do nosso sonho e das nossas aspirações. Eu sempre vou para as competições com essa ideia de dar meu máximo, aproveitar da maneira mais saudável, sábia e positiva possível, me respeitando e cuidando de mim.
E eu oro muito a Deus para que eu tenha memória ao longo dos meus anos de vida, para eu sempre lembrar desse dia. Ainda está caindo a ficha. Olha que chique, o Brasil de Fato me entrevistando?! Eu só tenho a agradecer mesmo.
Fonte: BdF Minas Gerais