De acordo com o Le Monde, o objetivo central da operação Lava Jato era, desde o início, acabar com a ameaça representada pelo crescimento de empresas
O que começou como a “maior operação contra a corrupção do mundo” e degenerou no “maior escândalo judicial do planeta” não passou, na realidade, de uma estratégia bem-sucedida dos Estados Unidos para minar a autonomia geopolítica brasileira. É o que revela o jornal francês Le Monde publicada neste sábado (10) e assinada por Nicolas Bourcier e Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris.
De acordo com o Le Monde, o objetivo central da operação Lava Jato era, desde o início, acabar com a ameaça representada pelo crescimento de empresas brasileiras que punham em risco os interesses dos Estados Unidos. Tudo começou em 2007, durante o governo George W. Bush. As autoridades norte-americanas estavam incomodadas pela falta de cooperação dos diplomatas brasileiros com seu programa de combate ao terrorismo.
O Itamaraty, sob o governo Lula, não estava disposto a embarcar na histeria dos EUA. Para contornar o desinteresse oficial, a embaixada dos EUA no Brasil passou a investir na tentativa de criar um grupo de experts locais, simpáticos a seus interesses e dispostos a aprender seus métodos, “sem parecer peões” num jogo, conforme indica um telegrama do embaixador Clifford Sobel a que o Le Monde teve acesso.
Assim, naquele ano, Sergio Moro foi convidado a participar de um encontro, financiado pelo Departamento de Estado norte-americano – o equivalente a um Ministério das Relações Exteriores. O convite foi aceito – e Moro fez contato com diversos representantes do FBI, do Departament of Justice (DOJ) e do próprio Departamento de Estado dos EUA (equivalente ao Itamaraty).
Para aproveitar a dianteira obtida, os EUA foram além e criaram um posto de “conselheiro jurídico” na embaixada brasileira, que ficou a cargo de Karine Moreno-Taxman, especialista em combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Por meio do “projeto Pontes”, os EUA garantiram a disseminação de seus métodos.
Entre as iniciativas implantadas, há a criação de grupos de trabalho anticorrupção, a aplicação de sua doutrina jurídica (principalmente o sistema de recompensa para as delações) e o compartilhamento “informal” de informações sobre os processos – ou seja, fora dos canais oficiais. Qualquer semelhança com a Lava Jato não é mera coincidência.
Em 2009, dois anos depois, Moreno-Taxman foi convidada a falar na conferência anual dos agentes da Polícia Federal brasileira, em Fortaleza. Diante de mais de 500 profissionais, a norte-americana ensinou os brasileiros a fazer o que os EUA queriam: “Em casos de corrupção, é preciso ir atrás do ‘rei’ de maneira sistemática e constante, para derrubá-lo”.
“Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é preciso que o povo odeie essa pessoa”, afirmou depois, sendo mais explícita. “A sociedade deve sentir que ele realmente abusou de seu cargo e exigir sua condenação”, completou, para não deixar dúvidas. O nome de Lula não foi citado nenhuma vez, mas, segundo a reportagem, estava na cabeça de todos os presentes, já que o escândalo do “mensalão” ocupava os noticiários do País.
Segundo os autores, o PT não viu o monstro que estava sendo criado. As autoridades estrangeiras, com destaque para um grupo anticorrupção da OCDE, amplamente influenciado pelos EUA, começaram a pressionar o País por leis mais duras de combate à corrupção.
Nesse contexto, Moro foi nomeado, em 2012, para integrar o gabinete de Rosa Weber, recém-indicada para o Supremo Tribunal Federal. Oriunda da Justiça do Trabalho, a ministra precisava de auxiliares com expertise criminal para auxiliá-la no julgamento. Moro, então, foi um dos responsáveis pelo polêmico voto defendendo “flexibilizar” a necessidade de provas em casos de corrupção.
“Nos delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito – esquemas velados, distribuição de documentos, aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da prova de acusação”, afirmou a ministra em seu voto. O precedente foi levado ao pé da letra pelo juiz e pelos procuradores da Lava Jato anos depois, para acusar e condenar Lula no caso (sem provas) do tríplex.
Em 2013, a pressão internacional fez efeito, e o Congresso brasileiro começou a votar a lei anticorrupção. Para não fazer feio diante da comunidade internacional, os parlamentares acabaram incorporando mecanismos previstos no Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) – uma lei que permite que os EUA investiguem e punam fatos ocorridos em outros países. Para especialistas, essa legislação é instrumento de exercício de poder econômico e político dos norte-americanos no mundo.
Em novembro daquele mesmo ano de 2013, o procurador geral adjunto do DOJ norte-americano, James Cole, anunciou que o chefe da unidade do FCPA viria imediatamente para o Brasil, com o intuito de “instruir procuradores brasileiros” sobre as aplicações do FCPA. A nova norma preocupou juristas já na época.
O Le Monde cita uma nota de Jones Day prevendo que a lei anticorrupção traria efeitos deletérios para a Justiça brasileira, devido a seu caráter “imprevisível e contraditório”, além da ausência de procedimentos de controle. Diz o documento, “qualquer membro do Ministério Público pode abrir investigações em função de suas próprias convicções, com reduzidas possibilidades de ser impedido por uma autoridade superior”.
Dilma Rousseff, já presidente à época, preferiu não dar razões para mais críticas ao seu governo, que só aumentavam, e sancionou a lei, apesar dos alertas. Em 29 de janeiro de 2014, a lei entrou em vigor. Em 17 de março, o procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, chancelou a criação da “força-tarefa” da Lava Jato.
Desde o surgimento, o grupo atraiu a atenção da imprensa, narra o jornal. “A orquestração das prisões e o ritmo da atuação do Ministério Público e de Moro transformaram a operação em uma verdadeira novela político-judicial sem precedentes”, afirmam Bourcier e Estrada.
No mesmo momento, a administração de Barack Obama nos EUA dava mostras de seu trabalho para ampliar a aplicação do FCPA e aumentar a jurisdição dos EUA no mundo. Leslie Caldwell, procuradora-adjunta do DOJ, afirmou em uma palestra em novembro de 2014: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade internacional – mas, sim, uma medida de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses em questões de segurança nacional e o das nossas empresas, para que sejam competitivas globalmente”.
O que mais preocupava os EUA era a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África. Era nesses continentes que as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios (impulsionadas pelo plano de criação dos “campeões nacionais”, patrocinado pelo BNDES, banco estatal de fomento).
“Se acrescentarmos a isso as relações entre Obama e Lula, que se deterioravam, e um aparelho do PT que desconfiava do vizinho norte-americano, podemos dizer que tivemos muito trabalho para endireitar os rumos”, afirmou ao Le Monde um ex-membro do DOJ encarregado da relação com os latino-americanos.
A tarefa ficou ainda mais difícil depois que Edward Snowden mostrou que a NSA (agência de segurança dos EUA) espionava a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras, o que esfriou ainda mais a relação entre Brasília e Washington. Vários dispositivos de influência foram então ativados.
Em 2015, os procuradores brasileiros, para dar mostras de boa vontade, organizaram uma reunião secreta com os norte-americanos, deixando-os a par das investigações da Lava Jato no País. Eles entregaram tudo o que os americanos precisavam para detonar os planos de autonomia geopolítica brasileiros, cobrando um preço vergonhoso: que parte do dinheiro recuperado pela aplicação do FCPA voltasse para o Brasil, especificamente para um fundo gerido pela própria Lava Jato. Os norte-americanos, obviamente, aceitaram a proposta.
Vendo seu apoio parlamentar derreter, em 2015 Dilma decidiu chamar Lula para compor seu governo, tentando salvar sua coalizão, conforme indica o jornal. Foi quando o escândalo explodiu: Moro autorizou a divulgação ilegal à TV Globo da interceptação (também ilegal) de um telefonema entre Lula e Dilma, no que veio a cimentar o clima político para a posterior deposição da presidenta, no golpe do impeachment.
Os EUA estavam de olho nas turbulências. Leslie Backshies, chefe da unidade internacional do FBI e encarregada, a partir de 2014, de ajudar a Lava Jato, afirmou que “os agentes devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, de como casos de corrupção internacional podem ter efeitos importantes e influenciar as eleições e cenário econômico”.
Segundo Leslie, “além de conversas regulares de negócios, os supervisores do FBI se reúnem trimestralmente com os advogados do DoJ para revisar possíveis processos judiciais e as possíveis consequências”. Assim, foi com conhecimento de causa que os EUA celebraram acordo de “colaboração” com a Odebrecht, em 2016.
O documento previa o reconhecimento de atos de corrupção não apenas no Brasil – mas em outros países nos quais a empresa tivesse negócios. Caso recusasse, a Odebrecht teria suas contas sequestradas – situação que excluiria o conglomerado do sistema financeiro internacional e poderia levá-lo à falência. A Odebrecht aceitou.
A Lava Jato estava confiante de sua vantagem, apesar de ter ascendido sem a menor consideração pelas normas do Direito. “Quando Lula foi condenado por ‘corrupção passiva e lavagem de dinheiro’, em 12 de julho de 2017, poucos relatos jornalísticos explicaram que a condenação teve base em ‘fatos indeterminados’”, destacou o jornal.
Após condenar Lula e tirá-lo de jogo nas eleições de 2018, Moro colheu os louros de seu trabalho ao aceitar ser ministro da Justiça do novo presidente Jair Bolsonaro. Enquanto isso, os norte-americanos puderam se gabar de pôr fim aos esquemas de corrupção da Petrobras e da Odebrecht, além de conter a influência e a projeção do Brasil na América Latina e na África.
Enquanto isso, os procuradores da Lava Jato – Deltan Dallagnol à frente – foram devidamente recompensados. Eles passaram a administrar parte da multa imposta pelos EUA à Petrobras e à Odebrecht, na forma de fundações de Direito privado dirigida por eles próprios em parceria com a Transparência Internacional.
Para Moro, a recompensa foi o início do fim de seu processo de canonização. Depois da eleição de Bolsonaro, veio à tona o escândalo da criação do fundo da Petrobras. O ministro Alexandre de Moraes frustrou os planos dos procuradores ao determinar a dissolução do fundo e direcionar o dinheiro para outras finalidades.
Em maio de 2019, o The Intercept Brasil começou a divulgar conversas de Telegram entre procuradores e Moro, hackeadas por Walter Delgatti e apreendidas pela Polícia Federal sob o comando do próprio Moro, já como ministro da Justiça. Entre outros escândalos, as conversas mostram como Moro orientou os procuradores – e como eles informaram EUA e Suíça sobre as investigações e combinaram a divisão do dinheiro.
Quando pediu demissão do ministério, Moro seguiu o mesmo caminho lucrativo de outros ex-agentes do DOJ e passou a trabalhar para o setor privado, valendo-se de seu conhecimento privilegiado sobre o sistema judiciário brasileiro. Seu trunfo é emitir consultorias para casos célebres – um posto normalmente bastante lucrativo. A Alvarez e Marsal, que o contratou, é administradora da recuperação judicial da Odebrecht.
Do site Vermelho com informações da Revista Consultor Jurídico