Uma rua completamente destruída pela força da água na cidade de Erftstadt, no oeste da Alemanha, em 16 de julho de 2021 (SEBASTIEN BOZON/AFP)

Cenário é destruidor com casas arrasadas pela força da corrente, árvores caídas, veículos arrastados, estradas e pontes afundadas ou corte de energia

Alemanha e Bélgica começaram neste sábado(17) a gigantesca tarefa de limpeza e reconstrução das áreas devastadas por temporais nos últimos dias, que causaram pelo menos 165 mortes na Europa e um prejuízo de milhões de dólares, enquanto os serviços de resgate tentam encontrar o paradeiro de dezenas de desaparecidos.

O número de vítimas continua a aumentar conforme as equipes de resgate entram nas áreas mais devastadas e encontram os corpos de pessoas presas em destroços deixados pelas intempéries, que também causaram danos materiais em Luxemburgo, Holanda e Suíça.

De acordo com o último balanço deste sábado, as mortes foram de 165, 24 na Bélgica e 141 na Alemanha, que também registra centenas de feridos, concentrados principalmente nos estados ocidentais da Renânia-Palatinado e Renânia do Norte-Vestfália.

Aos poucos, os moradores que tiveram que sair, quase fugindo, de suas casas ameaçadas pela água estão voltando. Muitos encontram um cenário desolador: paredes arrancadas pela força da corrente, árvores que caíram, veículos arrastados, estradas e pontes afundadas ou corte de energia.

“Há 48 horas vivemos um pesadelo. Damos voltas e voltas e não podemos fazer nada”, disse Cornelia Schlösser à AFP, observando o péssimo estado da padaria da família na cidade de Schuld, afetada pelas enchentes.

“Em questão de minutos, uma onda entrou na casa”, acrescenta.A chanceler Angela Merkel viajará pela região no domingo, com destino à cidade de Schuld, na Renânia-Palatinado, qualificada de “mártir” após ter sido quase totalmente devastada.

Corpos nas ruas

À medida que a água represada nas ruas começa a baixar e os serviços de emergência conseguem chegar até as regiões mais críticas atingidas pela enchente dos últimos dias, o estrago causado pela tormenta sem precedentes que castigou o oeste da Alemanha vai ficando mais evidente. De acordo com o último boletim divulgado pelas autoridades, mais de 150 pessoas morreram e centenas seguem desaparecidas.

As situações mais críticas foram registradas nos Estados da Renânia do Norte-Vestfália e Renânia-Paladino, ambos localizados na fronteira com a Bélgica. Apesar do progresso nas buscas e da trégua da chuva, autoridades alertam que a situação ainda é preocupante, e há risco de rompimento ou transbordamento de barragens.

O Estadão conversou com pessoas que testemunharam a destruição provocada pelas chuvas nos dois Estados. Nos relatos, ficam claros alguns dos efeitos diretos e indiretos da destruição provocada pela tempestade – comparada por um dos entrevistados ao furacão Katrina, nos Estados Unidos.

Leia os relatos:

Marco Kaschuba – Meteorologista e documentarista – Vale de Ahrweiler (Renânia-Palatinado)
Eu sou meteorologista e documentarista especializado em forças da natureza. Já viajei ao redor do mundo: fui aos Estados Unidos para filmar furacões, à Itália para filmar vulcões e tempestades de neve…

A previsão do tempo para o oeste da Alemanha apontava que haveria chuva pesada, de mais de 200 litros por metro quadrado. Isso me fez ir até a região de Ahrweiler, no vale do rio Ahr, que é uma região produtora de vinhos bem conhecida na Alemanha, com muitas montanhas e vales, o que o torna o local perfeito para ver enchentes se houver muita chuva.

Eu cheguei no vale na quarta-feira, antes das inundações. Eu sabia que teríamos chuva forte, mas nunca imaginei que chegaria ao que realmente aconteceu.

O houve foi uma catástrofe histórica. O volume máximo alcançado pelo rio, em altura, nos últimos 100 anos, era de 3,70 metros. Desta vez, chegou a algo em torno de 7 ou 8 metros, o que é uma loucura.

Todos os vilarejos do vale foram atingidos fortemente. Quase mil pessoas são consideradas desaparecidas no momento. Dezenas de carros foram arrastados pela correnteza. Centenas de casas desabaram total ou parcialmente.

Eu precisei subir às montanhas, porque o vale estava completamente coberto por água. Quando a enchente alcançou as vilas, todas as casas ficaram submersas. Carros flutuavam por onde antes eram ruas e era possível ouvir pessoas gritando por socorro.

O pior momento foi a noite de quarta para quinta-feira, mas só depois que o sol nasceu na quinta é que pudemos ver a destruição brutal. Em todas as ruas haviam carros virados. Casas e restaurantes destruídos, corpos nas ruas.

Pessoas procuravam por seus parentes, enquanto equipes de limpeza, militares e agentes da Cruz Vermelha procuravam por vítimas. Helicópteros resgatavam pessoas de seus telhados.

Durante a noite de quinta para sexta, o céu ficou aberto. Nesta sexta-feira, o mesmo ritual se repetiu: equipes de resgate e de limpeza trabalhavam nos vilarejos, em busca dos desaparecidos.

Eu ainda estou em choque. Deixei a região na tarde desta sexta-feira e estou em casa, em Reutlingen, a 200km de onde tudo se passou.

Você havia presenciado alguma cena tão trágica quanto essa? Do rio destruindo os vilarejos?

Talvez durante o furacão Katrina, no Mississippi, mas nunca em uma enchente em um vale europeu.

Emanoella Martins-Fuhrmann – Enfermeira geriátrica – Solingen (Renânia do Norte-Vestfália)
Faz duas semanas que está chovendo por aqui. Uma chuva fraca, constante.

Na quarta-feira, quando eu acordei e olhei pela janela, já estava começando a alagar. Tem um estacionamento do lado da minha casa, e a água estava batendo no tornozelo.

Eu comecei a pensar em como iria para o trabalho, mas vi que o transporte público estava funcionando. Consegui pegar os dois ônibus que normalmente pego para sair de Solingen e chegar a Langenfeld, onde fica o asilo de idosos em que eu trabalho como enfermeira. Quando eu cheguei lá, ainda estava relativamente normal.

Durante o trabalho é que as coisas começaram a piorar. As sirenes do batalhão do Corpo de Bombeiros, que fica lá perto, começaram a tocar. E continuou assim toda hora.

Eu não entendi muito bem porque estavam acionando tanto os bombeiros, mas uma colega explicou que quando chove assim, principalmente os porões inundam, e as pessoas chamam por socorro. Em Solingen, há relatos de pessoas que morreram nos porões. Não se sabe quantos, exatamente, porque o governo só vem divulgando por região, e aqui no Estado foram muitos, mas principalmente em Wuppertal e Hilden.

Quando eu saí do trabalho, fiquei sem saber como ir para casa. Uma amiga me deixou na parada de ônibus, que mostram o horário que cada ônibus vai passar. Quando eu cheguei, faltavam 5 minutos para o meu chegar. Depois faltavam 10. Depois 15. Até que disse que o ônibus não vinha mais.

Eu só pensava em como eu ia para casa, porque é em outra cidade. Eu pensei em pegar outro caminho, com um ônibus e um trem, mas quando eu olhei o aplicativo, não tinha mais trem.

Conversando com alguns amigos, brasileiros e alemães, perguntei como estava onde eles moram. E comecei a receber fotos e vídeos que me deixaram super assustada. Onde eu iria pegar o trem, a ferrovia estava com mais de um metro de água.

A ponte que eu passei para ir ao trabalho não estava mais lá. O túnel que tinha, estava totalmente inundado.

Chamei um motorista por aplicativo para ir para casa. Ele pegou um caminho totalmente diferente, e toda a rua que ele ia tinha interdição. Dava para ver a água em alguns lugares, em outros, só os destroços que foram carregados.

Eu não consegui, nesse momento, nem pensar em gravar nada. Eu estava preocupada em saber como é que estava a minha família, como é que estavam os meus amigos.

Quando cheguei em casa, eu não consegui dormir, porque eu fiquei escutando toda hora as sirenes dos bombeiros.

No dia seguinte, no trabalho, a gente recebeu a notícia que numa cidade vizinha, chamada Hilden, os hospitais estavam sem energia e estava tudo cheio de água. Eles tiveram que transferir os pacientes para outros hospitais ou para asilos. A gente recebeu lá no meu asilo alguns pacientes, porque eles não tinham pra onde ir. A gente recebeu mais ou menos cinco pacientes, porque a gente não tem capacidade. Quase todos os quartos estão com pacientes, pessoas que moram lá.

Eu fiquei sem notícias de uma amiga minha que mora em Wuppertal. Só tive notícias dela na quinta-feira à noite. Ela me mandou um vídeo de carros e caçambas sendo carregadas pela água. Muita gente lá está sem casa. Tem muita gente desabrigada. Muita gente que não tinha seguro, porque aqui na Alemanha, tudo é com seguro. E tem muita gente sem saber o que fazer.

Buscas por desaparecidos

Nessas regiões do oeste da Alemanha, por onde corre o Reno, as enchentes se deveram principalmente aos pequenos rios, que saíram de seu canal devido às fortes chuvas e invadiram áreas habitadas, construídas em áreas inadequadas.

É necessário drenar a água, avaliar os edifícios danificados, alguns dos quais terão de ser demolidos, restaurar a eletricidade, gás e telefone, além de abrigar quem perdeu tudo.

Danos nas redes de comunicação, que tornam muitas pessoas inacessíveis, também complicam a tarefa de estabelecer um balanço confiável de pessoas desaparecidas.

“Esperamos encontrar mais vítimas”, disse Carolin Weitzl, prefeita de Erfstadt, perto de Colônia, onde um deslizamento de terra destruiu várias casas.

O governador do estado da Renânia do Norte-Vestfália, Armin Laschet, garantiu que a catástrofe tem “uma magnitude histórica”.

É uma consequência “sem dúvida” das alterações climáticas, afirmou Mark Rutte, primeiro-ministro da Holanda, também afetado pelas chuvas mas sem vítimas mortais.

A tempestade deve diminuir neste final de semana nas regiões mais afetadas da Alemanha e também na Bélgica.

Neste país, também há cerca de vinte desaparecidos, segundo um balanço ainda provisório, disse o primeiro-ministro Alexander de Croo, que decretou um dia de luto nacional na terça-feira.

Em Angleur, ao sul de Liège, moradores puxavam a mobília encharcada das calçadas e retiravam a água ainda acumulada dentro das casas. Duas pessoas morreram nesta cidade às margens do rio Ourthe.

AFP

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