Produzido pelo ARTetetura e HUMANismo, o trabalho é dirigido pelo artista multimídia Fred Le Blue – “O filme procura entender em que sentido é concebível um caráter antiterapêutico da música e terapêutico do silêncio”, destaca cineasta – Foto: Alberi Pontes
Brasil de Fato – Com o objetivo de retratar a vida e obra do compositor Geraldo Vandré, estreia nesta quinta-feira (25), pelo YouTube, o filme “O Processo de metamorfose de Geraldo V – cura trauma silêncio e silenciamento na obra viva do artista”. Com produção do ARTetetura e HUMANismo, o trabalho dirigido pelo artista multimídia Fred Le Blue teve como proposta criar um quadro geral de escuta dos conflitos ideológicos prático-discursivos entre a esquerda e o militarismo no Brasil em torno da apropriação política da figura lendária de Vandré.
A obra também tem como objetivo tentar propor uma interface entre ciências políticas, direitos humanos e o campo da musicoterapia, como a Censura como forma de Silenciamento, a Escuta como trauma de música (Musicofobia), o Silêncio como música de cura (Silencioterapia) e a Musicalidade como terapia da loucura.
“O filme procura entender em que sentido é concebível um caráter antiterapêutico da música e terapêutico do silêncio. Mais especificamente entender, como uma obra tão meteórica (anos 60) e tão potente, em termos dramáticos para a consciência de classe, de geração e de nação, tornou-se traumática no psiquismo do compositor, por meio dos instrumentos de reforço negativo empregados pelo autoritarismo estatal dos militares como: a demissão laboral (cargo público), a censura poética, a tortura psicológica (físico) e o exílio político”, destaca Fred.
Geraldo Vandré, de herói a bandido
Nascido na Paraíba e radicado no Rio, Geraldo Vandré foi um dos mais enigmáticos personagens da música brasileira. De herói a bandido – ou vice-versa, conforme o ponto de vista – foi amado e odiado pela esquerda num intervalo de uma década. Colaborador do Centro Popular de Cultura da UNE (CPC) desde 1961, conheceu ali o também compositor Carlos Lyra, que se afastava da bossa nova em direção a uma música mais engajada. Logo fizeram juntos as primeiras canções, como Aruanda.
Mas foi em 1966 que Vandré ganhou repercussão nacional. Naquele ano, inscreveu no Festival da TV Record a música Disparada, composta com Théo de Barros e defendida por Jair Rodrigues. Dividiu o primeiro lugar com Chico Buarque, que concorria com A Banda, na voz de Nara Leão.
A consagração veio dois anos depois, quando Para Não Dizer Que Não Falei das Flores, também conhecida como Caminhando, ficou em segundo lugar no 3º Festival Internacional da Canção, atrás de Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, o mesmo adversário de 1966. A derrota enfureceu a plateia. Caminhando, afinal, era um tapa na cara da ditadura como ninguém jamais tinha ouvido. E Vandré, àquela altura, era ovacionado como o mais valente dos compositores. Especula-se que a euforia causada pela canção tenha apressado o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), dali a um mês e meio.
Vandré se exilou no Chile e de lá viajou para Alemanha e França. Quando voltou, em 1973, já não era o mesmo. Decidiu que só faria “canções de amor” e, para espanto de seus fãs, compôs Fabiana, em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira. Para muitos de seus contemporâneos, ele teria enlouquecido em decorrência das sessões de tortura. Em 2010, Vandré ressurgiu numa entrevista exibida pela GloboNews. Negou que tenha sido torturado e repudiou o rótulo de autor de músicas de protesto. “Eu não faço canção de protesto. Eu faço, fazia, música brasileira, canções brasileiras”, disse.
Confira abaixo a entrevista com Fred Le Blue
Brasil de Fato RS: Qual é a principal questão que te motivou a fazer o filme?
Fred le Blue: O filme procura entender em que sentido é concebível um caráter antiterapêutico da música e terapêutico do silêncio. Mais especificamente entender, como uma obra tão meteórica (anos 60) e tão potente, em termos dramáticos para a consciência de classe, de geração e de nação, tornou-se traumática no psiquismo do compositor, por meio dos instrumentos de reforço negativo empregados pelo autoritarismo estatal dos militares como: a demissão laboral (cargo público), a censura poética, a tortura psicológica (físico) e o exílio político.
A mesma música que cura e liberta pode ser também, mesmo que, nesse caso, no que tange mais aos efeitos colaterais de sua repercussão social, a que adoece o espírito. A internalização da opressão geraria, assim, um opressor de si, que opera por meio da autocensura e recalcamento em Geraldo V. (ao ponto de ele mesmo pedir para não chamarem por seu nome artístico Vandré) é uma tentativa de compensação psíquica dos prejuízos sociais causados pelos traumas decorrentes da retaliação política a uma poesia didática, combatente e comburente.
O excesso de exposição também advindo de sua clarividência retórica teve também como efeito no compositor, a necessidade de se tornar recluso e impor um ostracismo, que apesar de tudo, denúncia em silêncio e laconismo o arbítrio da regra que tem sido o estado de exceção. É claro que a mudez de Vandré só é ecoante porque tem como fiador uma discografia musical armada, pois que denunciativa das mazelas sociais e regionais brasileiras.
Qual a premência de trazer à baila Geraldo Vandré no atual contexto de autoritarismo aflorados no cotidiano presencial e digital?
A metamorfose kafkiana de Vandré em seu processo de despersonalização psíquica, que representa a decadência e polarização política do país, é pejorativamente chamada de “vandrelização” pela esquerda. O mais preciso não seria desvandrelização?
Apesar da estigmatização da ambiguidade de Vandré, a obra do compositor permanece intacta e atual, ainda sendo trilha sonora afetiva da resistência aos muitos golpes e minigolpes contra a Democracia e, anos depois, na Aeronáutica, à afirmação do próprio golpe (“revolução”). O que prova que para além do uso político da arte, que pode transformá-la em uma arma de guerra, ela, na verdade, tem seu sentido mais primordial na capacidade de ser uma tecnologia de paz, que aponte para uma “ecologia da mente”.
Talvez, a única terceira via viável seja mesmo “a “terceira margem do rio”. Na verdade, toda obra artística nos olha enquanto testemunho ocular autêntico e ambíguo de uma época, mesmo quando, historicamente, toma partido ou é usado para fins comerciais e ou políticos.
Os agentes políticos querem cooptar a genealidade atemporal do poeta para transmutar poesia em poder finito. Nesse sentido, a estigmatização simbólica da figura Vandré Jovem, enquanto músico e ativista de esquerda, em relação ao Velho, no sentido contrário, são as expressões mais alegóricas do histórico conflito ideológico polarizado no Brasil, que ainda hoje nos faz viver, esquizofrenicamente, um cabo de guerra psicossocial maniqueísta: Tradição e Modernidade; Cruz e a Espada; Deus e Diabo; Bem e Mal, Nós e Outros.
Mas afinal, qual é o legado de Geraldo Vandré?
A canção e a não-canção são igualmente de protesto na obra viva de Geraldo, pois que comunicam pelo silêncio, que não houveram mudanças culturais, que justifiquem novas composições. E que, mesmo que o fossem gravadas, seriam censuradas pelo mercado fonográfico e radiofônico em um contexto econômico imediatista, bem diferente da época dos grandes festivais de música.
E ainda que houvesse cenário musical favorável à música engajada na MPB, para além do hip-hop, Vandré teria ainda que superar a inércia chicomaníaca e sudestecentrismo antirnordestino, bem como, o estilo monástico de vida paulistano, ao qual ele aderiu, calcado no individualismo antissocial nas “máquinas celibatárias”, que se tornaram a vida confinada em apartamentos, sobretudo, após a pandemia.
Há, assim, muitos motivos para o recolhimento e fazê-lo é respeitar esse ímpeto de defesa e reclusão, mesmo que isso também seja uma forma subliminar patológica de sadismo sarcástico, que ataca pela indiferença e preciosismo. Nada que Vandré faça ou não faça irá mudar o fato de que ele foi um dos precursores dos Direitos Humanos no Brasil, utilizando o veículo de comunicação que é a MPB na época, para tratar temas espinhosos como a opressão política e laboral (vide Disparada, p. ex.).
A ilusão de ótica da pureza da subjetividade e da perversão de laço (social), faz com o que o sujeito vandreeniano, uma espécie de Zelig brasileiro, tenha que conviver com suas contradições de ser humano de forma abissal, premido em um amplo espectro fenomenológico por demais, com diversos graus de possibilidades situadas entre o estar dentro ou o estar fora, o ser eterno ou o ser etéreo, o ser ou não ser, a montanha russa ou a roleta russa.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul