Celebra-se neste mês o centenário de nascimento de dom Paulo Evaristo Arns, que foi arcebispo de São Paulo e cardeal. A lembrança de dom Arns me remete ao tempo de minha adolescência e juventude nesta cidade. Sempre o admirei muito, mas com o tempo a admiração aumenta ao conhecer mais sobre sua vida, obra e importância na história do Brasil.
Muito pode ser dito sobre este franciscano que amou os pobres, organizou a Igreja nas periferias paulistanas, zelou pela liturgia e incentivou a protagonismo do laicato. Era também intelectual, pessoa de fácil comunicação e promotor de pastorais e obras sociais. Foi um dos idealizadores da Pastoral da Criança, desenvolvida brilhantemente por sua irmã Zilda Arns. As diversas faces de sua vida estão registradas no belo documentário Coragem! As muitas vidas do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Nos tempos atuais, é muito importante lembrar a síntese feita por ele entre fé e política, ligando o Evangelho ao compromisso social e ao profetismo. Quando o Brasil viveu os tempos sombrios da ditadura civil-militar e da tortura, dom Arns visitou inúmeros presos políticos e organizou a Comissão de Justiça e Paz em sua arquidiocese, para dar-lhes assistência. Na morte do jornalista Vladimir Herzog, executado no Dops em 1975, Arns realizou um culto ecumênico na Catedral da Sé. Herzog era judeu e o culto teve a presença do rabino Henry Sobel. Na época, imperava a censura à imprensa e a informação oficial era que Herzog tinha se suicidado na prisão. Na catedral lotada com 9 mil pessoas, incluindo a imprensa estrangeira, dom Arns desmascarou a farsa ao dizer publicamente: “Basta! Vladimir Herzog foi assassinado”.
A repercussão foi grande e o governo destituiu o chefe militar daquela região. Foram as primeiras fissuras no edifício de uma ditadura impiedosa. Dois anos depois, a CNBB com a participação de dom Arns lançou o documento Exigências cristãs de uma ordem política, um primoroso manifesto em favor dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito. Em 1979, dom Arns engajou-se em um projeto ambicioso com o Conselho Mundial das Igrejas e o pastor presbiteriano Jaime Wright: uma ampla pesquisa nos arquivos da Justiça Militar sobre a repressão política e a tortura no Brasil, entre 1964 e 1979. Durante seis anos, uma equipe de pesquisadores, revezando-se discretamente, fez um levantamento de mais de 700 processos com depoimentos de presos políticos nos tribunais militares. Cerca de 850 mil páginas foram fotocopiadas. Eram provas irrefutáveis de torturas com requintes de crueldade. Em 1985, um resumo foi publicado na forma do livro Brasil nunca mais. Todo o material da pesquisa foi depois digitalizado e disponibilizado gratuitamente (aqui).
Dentre os momentos dramáticos da vida dom Arns, vale relatar o que ocorreu horas antes do culto ecumênico em memória de Herzog. O próprio Arns descreveu:
À 13 horas, chegam em minha residência dois secretários do governo. Emissários do governador. Talvez, do presidente da república, que se encontrava entre nós:
— O senhor não pode ir. Ele não é católico.
— Ele é meu irmão. E é irmão de todos os católicos. E eles lá estarão.
— Mas pode haver tiroteio, morte, e o senhor será o responsável.
— Lá estarei, para evitar mortes. O pastor não abandona as ovelhas, quando ameaçadas.
— Haverá mais de quinhentos policiais, na praça, com ordem de atirar, ao primeiro grito.
— É assim que tratam o povo? Quando grita de dor, vocês atiram?
— É um apelo. O senhor, não vá. Mande outro.
— Digam ao governador que o arcebispo estará com aqueles que Deus lhe confiou. Custe o que custar, ele cumprirá o dever. Agradeço a visita, mas digam ao governador que o povo se manterá calmo. Portanto, todo o mais correrá por conta dele.
Hoje, os brasileiros são beneficiários dos que resistiram à ditadura e se mobilizaram pela redemocratização do país. Mas a democracia brasileira está ameaçada. Nas últimas décadas, nunca se viu tantas pessoas defendendo abertamente intervenção militar, fechamento do congresso e do Supremo Tribunal Federal. A memória de dom Arns, sua luta e coragem hão de inspirar e fortalecer os que defendem o Estado Democrático de Direito, esta grande conquista civilizatória.
*Luís Corrêa Lima é sacerdote jesuíta, historiador e professor da PUC-Rio.
Parabéns Luís Correia Sinto contemplado em seus escritos, suas palavras e em seu apostolado. Que Deus lhe inspire cada mais nesta cidade abandonada pelo poder público