Por Cláudia Motta | RBA
Os crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia do novo coronavírus foram escancarados pela CPI da Covid, cujo relatório caminha para apontar mais de uma dezena deles. Além disso, notícia-crime apresentada nesta semana pelos advogados Adriana Cecilio Marco dos Santos e Leonardo David Quintiliano elenca alguns desses crimes e evidencia a gravidade de um país ser governado por alguém que cativa ímpeto destruidor.
Desse modo, os advogados atribuem a Bolsonaro os crimes de causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos (art. 267 do Código Penal); homicídio (art. 121 do Código Penal, na forma qualificada, simples, tentada, ou culposa) e lesão corporal (art. 129 do Código Penal, na forma grave, simples, tentada ou culposa). Como se não bastasse, os juristas ainda relacionam: perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 do Código Penal); infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do Código Penal); charlatanismo (art. 283 do Código Penal); e incitação ao crime (art. 286 do Código Penal).
Protocolada no último dia 7, a notícia-crime de 181 páginas relata a atuação do atual presidente da República durante a pandemia, inclusive omissões em relação a medidas de controle que se faziam necessárias. E também trata das ações por ele praticadas que proporcionaram a ampliação da gravidade da emergência sanitária. A notícia-crime contra Bolsonaro foi repassada no dia 13 à Procuradoria Geral da República (PGR) pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Em entrevista à RBA, a advogada Adriana Cecilio explica essa notícia-crime e fala sobre expectativas para o processo que pode resultar na prisão de Jair Bolsonaro. “Com certeza pode ser depositada aí alguma esperança de futuro para o país”, afirma.
Sobre a denúncia
Por que ingressaram com esse instrumento, uma notícia-crime?
A notícia-crime é um nome técnico para o que popularmente chamamos de “denúncia”. Quando sofremos um assalto, dizemos que vamos à polícia fazer uma “denúncia”, e não está errado dizermos isso. Ocorre que, tecnicamente, a lei dá outro nome para esse ato: comunicação de crime, notícia do crime, ou simplesmente notícia-crime. Segundo a lei processual, “denúncia” é o nome dado à petição inicial de uma ação penal. Apenas o Ministério Público, contudo, pode propor uma ação penal no nosso sistema.
O cidadão comum que testemunha um crime e a vítima podem comunicar um fato criminoso à polícia, ao Ministério Público e até ao juiz. Por se tratar do presidente, no entanto, que goza de foro privilegiado, essa notícia-crime deve ser dirigida ao Procurador-Geral da República e ao STF. Desse modo, como cabe ao STF autorizar a instauração de inquérito contra o presidente, tem sido praxe encaminhá-la primeiro ao Supremo. Ainda se discute, porém, se eventual omissão do Procurador-Geral da República pode ensejar ação penal subsidiária da pública, prevista no Código de Processo Penal. É o que também se avalia nesta entrevista.
Quais as possibilidades da notícia-crime, que resultado pode ter?
A notícia-crime pode ensejar a abertura de inquérito pela Procuradoria-Geral da República. Certamente, o relatório da CPI trará outros elementos que reforçará a notícia-crime apresentada, a qual será complementada por outras provas, inclusive com depoimento do presidente. Se oferecida a denúncia pela PGR, a Câmara dos Deputados deverá autorizar seu processamento neste mandato. Caso seja negado, como ocorreu com o ex-presidente Temer, ele só poderá ser processado depois de sair do cargo de presidente. A pena prevista para os crimes pode superar os 30 anos de prisão.
Longa espera
Qual o trâmite, quanto tempo de espera?
A notícia-crime vai ser analisada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que pode pedir a abertura de inquérito ou pedir o arquivamento, se entender que não há elementos suficientes para configuração de crime. Se a Procuradoria-Geral da República pedir o arquivamento sob alegação de que não há tipicidade da conduta, o ministro Alexandre de Moraes pode devolver à PGR, caso entenda que o pedido de arquivamento não se mostre coerente com os elementos da notícia-crime.
Foi o que ocorreu recentemente na petição 9695, em que a ministra Rosa Weber devolveu o pedido de arquivamento à PGR. Em nova manifestação, a PGR pode decidir abrir o inquérito ou insistir no arquivamento. O novo artigo 28 do Código de Processo Penal, alterado em 2019, previa a revisão do pedido de arquivamento, Mas ele teve sua eficácia suspensa liminarmente pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6305. Obviamente, se houver clara desídia (negligência) ou manifesta tergiversação (jogar para os dois lados) do procurador responsável, recorreremos às instâncias administrativas do Ministério Público, além da devida promoção de representação administrativa e criminal. Mas acreditamos na competência e seriedade da Procuradoria-Geral da República.
Um presidente da República, em função do cargo, pode ficar isento de responsabilidades criminais como as imputadas a Bolsonaro?
Sim, mas temporariamente, e somente se a Câmara dos Deputados não autorizar seu processamento. É a única previsão legal que confere tratamento penal diferenciado ao presidente em função do seu cargo. Isso se comparado com o tratamento dispensado ao cidadão comum.
Justiça seja feita
A senhora acredita que algum instrumento jurídico seja capaz de provocar o impeachment de Bolsonaro. Afinal, mais de 130 pedidos foram até hoje ignorados pela presidência da Câmara dos Deputados?
Além dos próprios pedidos de impeachment, inquéritos civis e penais em curso contra Bolsonaro, direta ou indiretamente, há mandado de segurança e mandado de injunção aguardando o julgamento, pelo STF, do pedido de processamento das denúncias contra Jair Bolsonaro pelo presidente da Câmara dos Deputados. O pedido formulado nessas ações se assemelha à decisão do STF relativamente à instauração de uma CPI, que também não possui prazo de instalação fixado pela Constituição. Mas que, segundo a própria Corte, não pode aguardar indefinidamente a boa vontade de uma única autoridade para sua efetivação.
Nunca é demais lembrar que essa prática não existia até ter sido “inventada” pelo ex-presidente da câmara Eduardo Cunha. Até então, os pedidos de impeachment eram encaminhados diretamente à Comissão de Impeachment, de que trata a Lei 1.079/50. Essa “retenção” de pedidos acaba gerando uma hipertrofia do poder do presidente da Câmara dos Deputados e do Senado, que desequilibra o princípio da separação de poderes, na medida em que permite que a sorte do presidente da República, dos ministros e do procurador-geral da República, dependa da boa vontade de um único membro do Poder Legislativo, e não de todo o órgão, como quis o constituinte.
Crimes podem tornar Bolsonaro inelegível
Nesse caso, a senhora acredita que algum desses instrumentos possa, portanto, fazer o que a Câmara não fez?
Sim, se o STF entender que o pedido deva ser processado, a Câmara poderá autorizar o julgamento do pedido de impeachment pelo Senado. O mesmo se dá relativamente à presente notícia-crime, que também dependerá do aval da Câmara. Não podemos nos esquecer ainda do inquérito que está em tramite no TSE, que pode torná-lo inelegível, mesmo sem que haja cassação do mandato, caso venha a ser julgado e condenado.
Ações indenizatórias
O que significa esse processamento? E, caso negado, a mesma notícia-crime permanece para processar Bolsonaro depois que ele sair do cargo?
O processamento é a tramitação das denúncias oferecidas, a partir da leitura de cada uma, o encaminhamento à Comissão Especial de Impeachment para emissão de parecer (que pode opinar pelo arquivamento ou por sua submissão ao plenário da Câmara dos Deputados para deliberação). Se a Comissão Especial emitir parecer a favor da deliberação, a Câmara dos Deputados deliberará se autoriza ou não a instauração de processo de impeachment. No caso de crime comum, de que trata a notícia-crime, a Câmara dos Deputados também deve autorizar o processo.
A diferença entre ambos é que os pedidos de impeachment perdem o objeto após a saída do cargo do denunciado, já no caso da notícia-crime o processo apenas fica suspenso enquanto o denunciado ocupar o cargo, prosseguindo logo após o fim do mandato, perda do cargo ou exoneração. Depois de deixar o cargo, a competência para denunciar e julgar o presidente continuará com a PGR e o STF, nos crimes comuns cometidos no cargo e em razão dele (AP 970 – STF). Restará definir se todos os crimes de Bolsonaro indicados em nossa notícia-crime são crimes cometidos em razão do cargo ou não. Caso contrário, ele poderá ser processado em primeiro grau.
Além disso, o presidente poderá responder a outras ações, como ações indenizatórias movidas por familiares de vítimas da covid, ressarcimento à União por condenações em instâncias internacionais, ou até por sobrecarga no Sistema Único de Saúde, se demonstrada a relação de causa e efeito.