O “Pacote da Morte” é um conjunto de projetos de lei proveniente de parlamentares vinculados à bancada ruralista que visam flexibilizar leis ambientais no Brasil, favorecendo a ocupação de terras tradicionalmente ocupadas com fins de exploração e lucro, em detrimento às questões ambientais, climáticas e indiferentes à cultura das populações autóctones.
* Por Éder Rodrigues dos Santos – Ecodebate
Os territórios tradicionais sofrem constantemente com invasões, mineração ilegal, desmatamentos, queimadas, pressão das monoculturas transgênicas e agrotóxicas, barragens em rios e violência no campo. Afetados diretamente, os povos indígenas são os grupos mais aguerridos no combate a ideia conservadora de espoliação de suas terras, porque trata-se de sua sobrevivência concreta.
O Pacote da Morte é a forma gourmet legalizada de praticar a necropolítica estatal. De acordo com filósofo africano, Achille Mbembe, a necropolítica é o processo em que o estado cria, para si, o direito de eliminar determinado grupo social. O ensaio profundamente geográfico do autor camaronês demonstra que o inimigo é criado ficcionalmente pelo estado, resultado de exclusão histórica.
Observa-se que a geonecropolítica à brasileira tem lugar definido: as terras indígenas e bairros periféricos dos grandes centros urbanos; e o alvo: as populações afro-ameríndias. Como sugere o antropólogo, Celso Prudente, a imposição vertical das vontades de dominação do euro-hétero-macho-autoritário, na dimensão de um anacronismo histórico, é fenômeno inverso ao telurismo ontológico de horizontalidade democrática, percebida no íbero-ásio-afro-ameríndio.
Este confronto de mundos é perceptível em nossa sociedade nos detalhes da vida sociocultural e política, com a criação de leis. Na arena social, de acordo com o Atlas da Violência 2021, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceira com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FIGURA 01), no período de 2009 a 2019, verifica-se que houve 623.439 homicídios no Brasil, sendo que 77% das pessoas alvos desses assassinatos são negras. Neste período, em números absolutos, registrou-se 2.074 homicídios de pessoas indígenas.
Figura 01 – Taxa de Homicídios no Brasil e Taxa de Homicídios: Indígenas (2009 a 2019). Fonte: Atlas da Violência, IPEA 2021
Na dimensão política, ressalta-se que em junho do ano passado (2021), o Congresso Nacional fez, possivelmente, o maior ataque à floresta amazônica e aos povos indígenas, desde a invasão portuguesa. O Projeto de Lei 490/2007 aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara prevê a limitação das demarcações de terras indígenas no Brasil, sendo instituído o ‘marco temporal’, com o qual se quer determinar que os indígenas que não habitavam os territórios em cinco de outubro de 1988 – quando se promulgou a Constituição Federal – não tenham mais direito de ocupação, mesmo que sejam terras ancestrais.
O PL flexibiliza o acesso as terras indígenas dos povos ditos em isolamento voluntário, dando poderes à União de acessar os territórios para fins de utilidade pública. Essa é uma das bombas a serem detonadas com a implementação do Pacote da Morte para extinguir a Amazônia. O Pacote da Morte é o instrumento central nessa geonecropolítica, que inclui, além do apocalíptico projeto de Lei 490/2007, os PLs: 191/2020, 2633/2020, 510/2021, 2159/2021 e o PDL 177/2021.
O PL 191/2020, de autoria da Poder Executivo, pretende liberar o garimpo predatório nas terras indígenas. Um sonho antigo de grupos empresariais e políticos. Aguarda criação de Comissão Temporária pela mesa da Câmara e está pronto para ser pautado no plenário. O PL 2633/2020, por sua vez, é conhecido como PL da Grilagem, de autoria do deputado federal Zé Silva (SOLIDARIEDADE/MG).
O PL 2633 vai permitir com que a regularização fundiária das terras da União seja feita por autodeclaração, com dispensa de vistoria pelo Incra. Permite também anistiar aqueles que cometeram crimes ambientais. Os ambientalistas denunciam que o PL vai estimular novas ocupações de áreas públicas e desmatamento. É criminoso, segundo eles, pois é um cheque em branco para a grilagem. Foi aprovado na Câmara e está aguardando apreciação pelo senado Federal.
O PL 510/202, de autoria do senador Irajá Filho (PSD/TO) beneficia médios e grandes posseiros e especuladores de terra pública, incentivando a ocupação de novas áreas de floresta pública, promovendo a grilagem e o desmatamento ilegal. O efeito maléfico é múltiplo, pois anistia as invasões ocorridas e promove a expectativa de novas invasões a serem regularizadas. Está pronto para entrar em pauta na comissão de Meio Ambiente do Senado.
O PL 2159/2021, conhecido como Projeto de Lei do licenciamento ambiental, permitirá que sejam dispensados do licenciamento ambiental empreendimentos de saneamento básico, manutenção em estradas e portos, distribuição de energia elétrica, atividades agropecuárias, obras de instalação de redes de água e esgoto, obras de baixo e médio risco ambiental (incluindo mineração) e obras consideradas de ‘porte insignificante’ pelo órgão licenciador.
Esse PL libera, por exemplo, a atividade pecuária da exigência de licenciamento ambiental. Entretanto, está comprovado que a pecuária contribui para o efeito estufa com a liberação de gases noviços, como o metano, pois para expandir, precisa desmatar áreas destinando às pastagens. O Brasil é o detentor do maior rebanho bovino do mundo e o PL vai dar outro cheque em branco, desta vez, aos grandes empreendimentos para que promovam mais devastação. Após 20 anos, o PL foi aprovado pela Câmara, sob relatoria do deputado Neri Geller (PP/MT). No Senado terá relatoria de Kátia Abreu (MDB/TO) que, além de senadora, é pecuarista.
O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB/RS), pretende desobrigar o Brasil do cumprimento à Convenção 169 da OIT que garante aos Indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais o direito de autodeterminação sobre suas próprias vidas e territórios, entre outros direitos. A OIT é um dos principais instrumentos de luta de povos e comunidades tradicionais no mundo, que agrega 23 países. Um dos méritos da convenção, ratificada pelo Brasil em 2002, é que ela rompe com a doutrina da tutela do Estado.
O PDL foi criticado por 240 organizações, dentre essas, entidades científicas, organizações e movimentos sociais que se manifestaram junto ao Congresso Nacional. O PDL aguarda designação de relator na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Depois, passará pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias e pela Comissão de Constituição e Justiça. Desta forma, conclui-se que a necropolítica é o estágio mais degradante de um estado racista, pois lança mão de seus aparelhos para seguir a marcha da destruição.
Nesta altura, destacamos a presença no debate público da liderança indígena nacional e escritor indígena, Ailton Krenak, com seu pensamento impresso na obra A vida não é útil (Companhia das Letras. 2020). Ele e centenas de outros intelectuais, escritores, escritoras e lideranças indígenas têm demonstrado, por meio da sensível escuta da natureza, a sublime possibilidade de vislumbrar novos mundos e suas críticas ao modelo desenvolvimentista colonial. Ele aponta que: “destruir a floresta, o rio, destruir as paisagens, assim como ignorar a morte das pessoas, mostra que não há parâmetro de qualidade nenhum na humanidade […]”. Em outra publicação intitulada Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019), ele destaca a resistência das populações tradicionais no país em meio a esta guerra: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa”.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Krenak fala: “A nossa história colonial é uma história de genocídio contra o povo indígena […] A história de colonização do Brasil é uma marcha sobre os territórios indígenas e a edificação sobre cemitérios indígenas”. Falas conscientes de uma bruta realidade, falas consistentes de uma vívida consciência de resistência memorial. Ainda para o Globo, em agosto de 2021, Krenak dispara sobre a intenção do presidente da Câmara, Artur Lira, em flexibilizar as reservas indígenas: “as reservas estão sendo invadidas com ajuda de quem tem a atribuição constitucional de proteger essas áreas. O que ele está fazendo é atender ao lobby das mineradoras que querem regulamentar os seus planos de meter a mão nos territórios”.
Nesse mundo dito moderno, a mercadoria e o lucro estão no centro. Tais interpretações representam a pobreza do pensamento moderno ou pós-moderno, com suas filosofias antropocêntricas, as quais selecionam quais os humanos são mais importantes que outros. Uma autodeclaração de destruição iminente, estimulada por esta mesma sociedade do consumo e do cansaço, pois, nossa demanda coletiva, deveria ser o cuidado da ‘casa comum’. A geonecropolítica é fenômeno que aniquila aqueles a quem o estado escolheu, no entanto, afeta a todos, pois o que está em jogo é o aspecto ambiental e climático do planeta.
A perspectiva de biointeração com a natureza está presente no pensamento indígena, no qual os humanos convivem com não-humanos e com os outros seres visíveis e invisíveis. As espacialidades indígenas são múltiplas, telúricas e hiperfísicas, ou seja, os mundos invisíveis afetam os visíveis, fenômeno que tem valor central na vida humana, pois a sacralidade está presente.
Finalizamos com as palavras de Krenak, na mesma belíssima entrevista ao Jornal Globo, que representa uma resposta indígena ao Pacote da Morte: “Seria importante a humanidade entender que o planeta não é só utilitário. A sociedade precisa parar de olhar o mundo como se fosse um supermercado.”
* Éder Rodrigues dos Santos – Jornalista, sociólogo, mestre e doutorando em Geografia, membro da Mostra Internacional do Cinema Negro e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (UNIR). E-mail: ederaudiovisual@hotmail.com.