Coerente com a campanha que o levou à Casa Branca, novo presidente americano suspende políticas irracionais de Trump e engrossa coro dos descontentes com o governo brasileiro
O início do governo de Joe Biden tem sido coerente com seus compromissos de campanha. Nesse sentido, a questão da imigração é talvez a mais simbólica. O democrata assinou na terça-feira (2) medidas para reunir famílias de imigrantes ilegais separadas de seus filhos pelas políticas do governo de Donald Trump. Mas será preciso uma força-tarefa para transpor dificuldades burocráticas, como a falta de documentos que permitam a rápida associação e reencontro entre os entes separados. Tal política de Trump, não sem razão, foi considerada por analistas como nazista. Chegou a ser tema de um episódio realista e comovente da aclamada série Law and Order SVU, em que se veem dezenas de crianças enjauladas em uma área de segurança, como animais.
Em política externa, o democrata adota o tom do chamado multilateralismo, recolocando os Estados Unidos como interlocutores ativos no Acordo de Paris e em organismos como Nações Unidas e Organização Mundial da Saúde. Como noticiou o The New York Times na quinta-feira (4), Biden anunciou o fim do apoio do país à campanha militar da Arábia Saudita no Iêmen. Por outro lado, o tom com que o democrata se refere a Rússia e China permanece duro.
“Normalidade”
Obviamente, os Estados Unidos sob Biden vão continuar a defender o lema “America first“. Mas os democratas no mundo e, dentro do país, as “minorias” (negros, latinos, mulheres) comemoram o ressurgimento dos parâmetros “normais”. “É um alívio ver a volta do bom senso e voltar a ter esperança de um mundo sem as ‘baixarias’ para as quais Trump apelou e Bolsonaro apela”, diz Thomas Heye, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em relação à Venezuela, por exemplo, como mostra reportagem do Brasil de Fato, Biden começou a flexibilizar, cautelosamente, algumas sanções econômicas, passando a permitir transações comerciais por via marítima e aérea com o país vizinho. A medida é puramente pragmática, porque politicamente não está no horizonte o reconhecimento do presidente Nicolás Maduro.
Brasil de Bolsonaro: vilão ambiental
A questão ambiental – tema fundamental de sua campanha – é outro ponto em que Biden vai investir pesado, politicamente. E aí entra o Brasil. Por exemplo, sob a gestão Biden, os Estados Unidos projetam a adoção de políticas contra a importação de produtos brasileiros provenientes de desmatamento ilegal. A pressão contra a “política” ambiental do governo Bolsonaro e seu ministro Ricardo Salles não é, de resto, apenas norte-americana. “Há uma orquestração da campanha contra o grande vilão ambiental, que hoje é o Brasil”, observa Heye.
Outros líderes, como o presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler alemã, Angela Merkel, não só fazem parte da “orquestração” contra o “vilão ambiental” como querem distância de Bolsonaro. “Seríamos eleitos o grande vilão internacional, o vilão favorito do mundo. Biden não está sozinho. Macron também tem torpedeado Bolsonaro. Merkel, aliás, se recusa a entrar no mesmo recinto em que Bolsonaro estiver. Ela não quer que alguém tenha nem a chance de fazer uma foto dela sequer perto de Bolsonaro”, constata o professor da UFF.
Eleições na Alemanha
Claro, os líderes de França e Alemanha têm os olhos voltados para seu público interno e também para a União Europeia. Em setembro, ocorrem as eleições para a sucessão de Angela Merkel. Ela e Macron têm extremo cuidado para não assustar o crescente e importante eleitorado verde, cujos votos estão na mira de todos os políticos importantes do Velho Mundo. Qualquer associação com Bolsonaro e seu governo que queima a Amazônia e o Pantanal é uma desastrosa antipropaganda.
Se as coisas podem ficar mais complicadas para Bolsonaro ante a nova gestão da Casa Branca, as armas dos líderes mundiais contra o presidente brasileiro não parecem, num primeiro momento, tão contundentes quanto desejariam setores e cidadãos que prezam a democracia e querem o impeachment do presidente brasileiro. Por hipótese, “a arma mais tradicional para esse tipo de situação seriam sanções econômicas”, sugere Heye. Mas tal solução – por parte do Ocidente ou mesmo da China – é muito improvável, além de indesejável. “Sanções econômicas têm uma característica muito triste, porque afetam a parte mais carente da sociedade”, observa o analista.
Uma solução menos drástica seria, por exemplo, Biden subsidiar a produção de soja aos agricultores americanos, o que agradaria os eleitores tradicionais de Trump. Apesar das rusgas entre chineses e americanos, muitas vezes retórica para consumo interno, com um preço melhor os orientais poderiam substituir a commodity brasileira pela estadunidense. “Com isso, Biden minaria os redutos eleitorais do Trump, e de Bolsonaro também, e o agronegócio brasileiro ficaria muito contrariado com o presidente”, diz Heye.
A retórica bolsonarista
Mas o analista pondera que Bolsonaro também seria capaz de usar sua conhecida retórica farsesca e capitalizar situações adversas provocadas por Biden, colocando-se como vitima da comunidade internacional, invertendo o discurso de atrelamento cego aos Estados Unidos de Trump. “Com isso, poderia ainda roubar o discurso de parte da esquerda brasileira”. Esse discurso, obviamente, seria dirigido ao bolsonarismo “de raiz”, que ignora a crise e a tragédia da pandemia, que já matou mais de 230 mil brasileiros. “E, no momento, a vitória no Congresso, ao eleger os presidentes da Câmara e do Senado, o fortalece”, observa Heye.
Trump é passado
Segundo documento revelado pela BBC News Brasil esta semana, Biden e membros do alto escalão da Casa Branca receberam um caudaloso dossiê pedindo o “congelamento” de acordos, negociações e alianças políticas com o Brasil “enquanto Jair Bolsonaro estiver na Presidência”. O documento, segundo a reportagem, é endossado por mais de 100 acadêmicos de universidades como Harvard, Brown e Columbia. Entidades como Friends of the Earth, nos Estados Unidos, e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também apoiam a ideia.
Entre os acordos feitos pelo presidente brasileiro e ex-presidente americano, está o que, na prática, cede a base de Alcântara aos EUA, segundo analistas um claro atentado à soberania nacional. “É muito grave”, avalia Heye. Bolsonaro, unilateralmente, isentou norte-americanos de pagarem taxas para entrar no Brasil, isenção que não beneficia os brasileiros, violando o princípio de reciprocidade diplomática, como observa o professor da UFF.
“Haveria espaço para conversar com Biden sobre questões como essas. Mas, convenhamos, com nosso atual chanceler, não dá para imaginar um diálogo muito frutífero com a diplomacia americana. Com a primeira ‘terraplanície’ que Ernesto Araújo soltar, acaba a conversa”, conclui Thomas Heye.
Via RBA