A hierarquia e a disciplina são os pilares institucionais das instituições militares, segundo seus regulamentos.

Por João Figueiredo*

A hierarquia pode ser definida como organização fundada sobre uma ordem de prioridade entre os elementos de um conjunto ou sobre relações de subordinação entre os membros de um grupo, com graus sucessivos de poderes, de situação e de responsabilidades. A disciplina, por sua vez, pode ser entendida como a capacidade de organização, de seguir propósitos, mediante a obediência ao conjunto de regras e normas que são estabelecidos por determinado grupo e que requer o cumprimento de responsabilidades específicas de cada pessoa.
Não há como negar que a hierarquia e a disciplina são categorias imprescindíveis em qualquer organização, seja ela militar ou civil, pública ou privada, religiosa ou secular – que o diga Sun Tzu, autor de “A arte da Guerra”, escrito no século IV a.C. Contudo, essas categorias, como veremos adiante, no contexto militar, têm uma significação que está além de uma simples visão racional. Vamos tentar entender essa questão à luz da Psicanálise Reichiana.
Hierarquia e disciplina, no meio militar, teoricamente são definidos segundo as regras da semântica e apresentados como uma exigência lógica determinada por uma única força (a dos regulamentos) que atua sobre os indivíduos, colocando uns submissos aos outros, em virtude de necessidades táticas e estratégicas do campo militar. Na prática, porém, “há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”, como disse Hamlet, personagem shakespeariano.
Concomitante com a racionalidade presente nessas relações, há muita subjetividade, uma gama de sensações (fenômenos perceptivos), sentimentos (fenômenos subjetivos) e emoções (relações afetivo-expressivas) atuando com força motriz. O lado profissional é apenas a ponta do iceberg. As relações hierárquicas no meio castrense, exceções à parte, costumam ser recheadas de atitudes conduzidas pelos traumas, frustrações e complexos diversos de quem tem autoridade para mandar.
Wilhelm Reich, em “Psicologia de Massas do Fascismo”, fala dos traumas e frustrações, especialmente os decorrentes da repressão sexual, que se tornam combustíveis para as ações de futuros ditadores, ou de futuros pais que farão dos seus lares microcosmos de estados ditatoriais. O autor também não deixa escapar o aspecto libidinal do ambiente militar: o uniforme, o ideal de virilidade, as paradas, as posturas marciais, o exibicionismo, segundo ele são características vinculadas diretamente à libido, que produzem excitação tanto nesses indivíduos como em outras pessoas, principalmente entre aquelas com visão acrítica da realidade.
Mas, vejamos algumas características da hierarquia militar, sob a perspectiva psicanalítica reichiana. Ela, em tese, se organiza em torno do poder pelo grau de saber, pelo conhecimento: o cabo é superior ao soldado porque, em tese tem mais conhecimento profissional que este; o sargento é superior ao cabo pela mesma razão, e assim sucessivamente. Ou seja, a hierarquia militar tem por base o conhecimento na profissão, dentro de uma visão realista, concreta. Entretanto, as relações hierárquicas dessas corporações perpassam o campo racional e se revestem de um simbolismo capaz de mover as pessoas envolvidas sem que elas percebam que são conduzidas por essa força.
Essas relações ganham um caráter quase sobrenatural, sagrado, por assim dizer. As insígnias dos superiores – especialmente nos níveis hierárquicos mais elevados – são vistas não apenas como indicativo de grau hierárquico, mas como se entidades transcendentais fossem. O poder emanado dessa simbologia é algo extraordinário, capazes de mover os indivíduos (quem manda e quem é mandado) muito além do plano racional. Se dois soldados estão conversando à vontade em determinado ambiente e chega um coronel, por exemplo, o rumo da conversa e as atitudes dos soldados mudam completamente; é como se uma força externa agisse imediatamente sobre os dois, criando tensão e cuidados com a fala e a postura corporal… Por outro, aos olhos de um bom observador, o superior, no caso exemplificado, quase sempre tem os seus deleites íntimos pelo poder que emana de si.
As forças que movem essas relações, são mais visíveis em jovens alunos, mormente dos cursos de formação de soldados. Durante os cursos e logo após a conclusão deles, esses alunos tendem a se mostrar excessivamente entusiásticos, devotados cegamente ao ambiente militar, extremamente exaltados com os comandos em altos tons de voz e com ordens emanadas de maneira ríspida, enérgica… A grande maioria de suas brincadeiras nos momentos de descontração, por essa época, são representações teatrais do que vivenciam nos cursos envolvendo autoritarismo e submissão. Encenam comandos, ordens enérgicas, movimentos corporais vibrantes e atitudes de submissão de alguém ao seu tacão. Fazem teatro daquilo que vivenciam durante o curso.
Em suma, as relações hierárquicas, especialmente do campo militar, não são revestidas de impessoalidade, ainda que as normas que as regem digam o contrário.
* Historiador, sociólogo, jornalista, professor de Capoeira e de Yoga, terapeuta integrativo (associa Capoeira, Yoga e Psicanálise Reichiana).

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