O desabafo de José Saramago sobre privatizações: Privatize-se tudo!
“Para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo…”
O texto abaixo trata-se de um registro de José Saramago, sobre as privatizações, em Cadernos de Lanzarote – Diário III, págs. 147 e 148.
Eis o texto:
“Regressados de uma viagem à Argentina e Bolívia, os meus cunhados María e Javier trazem-me o jornal Clarín de 30 de Agosto. Aí vem a notícia de que vai ser apresentada ao Parlamento peruano uma nova lei de turismo que contempla a possibilidade de entregar a exploração de zonas arqueológicas importantes, como Machu Picchu e a cidadela pré-incaica de Chan-Chan, a empresas privadas, mediante concurso internacional.
A mim parece-me bem.
Privatize-se Machu Picchu,
privatize-se Chan Chan,
privatize-se a Capela Sistina,
privatize-se o Pártenon,
privatize-se o Nuno Gonçalves,
privatize-se a Catedral de Chartres,
privatize-se o Descimento da Cruz, de Antonio da Crestalcore,
privatize-se o Pórtico da Glória de Santiago de Compostela,
privatize-se a Cordilheira dos Andes,
privatize-se tudo,
privatize-se o mar e o céu,
privatize-se a água e o ar,
privatize-se a justiça e a lei,
privatize-se a nuvem que passa,
privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos.
E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar,
privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional.
Aí se encontra a salvação do mundo…
E, já agora,
privatize-se também a puta que os pariu a todos”.
– José Saramago, em “Cadernos de Lanzarote – Diário III”. Lisboa: Editorial Caminho, 1996.
Cadernos de Lanzarote
Os Cadernos de Lanzarote são a reunião dos diários de José Saramago escritos no período de 1993 a 1995 na ilha de Lanzarote, arquipélago das Canárias onde ele viveu com sua mulher Pilar.
A melhor definição de diário é do próprio Saramago neste livro:
“Por muito que se diga, um diário não é um confessionário, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse chegar mesmo a ser um romance se a função da sua única personagem não fosse a de encobrir a pessoa do autor, servir-lhe de disfarce, de parapeito. Tanto no que declara como no que reserva, só aparentemente é que ela coincide com ele. De um diário se pode dizer que a parte protege o todo, o simples oculta o complexo. O rosto mostrado pergunta dissimuladamente: Sabeis quem sou?, e não só não espera resposta, como não está a pensar em dá-la.”
Privatize-se tudo!” – José Saramago