Por Fernando Brito
Mino Carta, no seu artigo na CartaCapital que começa a circular hoje, encontra na História, com incomum precisão, uma comparação tão exata quanto a que irritou Sérgio Moro ao se ver posto, pelo professor Rogério Cerqueira Leite, como o Savonarolla dos nossos tempos. Ao lembrar da Medusa Murtola, pintada em 1597 por Michelângelo Caravaggio, talvez provoque na presidente do Supremo Tribunal Federal ira semelhante à que teve o o juiz “uber alles” de Curitiba, até pela baixa erudição e menor ainda autocrítica comum a ambos.
Diferencia-os porém, a relação com a vaidade e é por isso que como na lenda clássica de que se valeu Caravaggio, haja o mortal espanto de Górgona ao ver-se refletida no escudo com que a deusa da Sabedoria, Minerva, havia dado a Perseu, aquele que conseguiu cortar-lhe a cabeça.
A Medusa, como se sabe, foi condenada a decair à imensa fealdade pela própria Minerva, divindade também das guerras justas e que se viu no dever de destruir o monstro que ela própria criara.
A metáfora de um Judiciário que paralisa mortalmente um país na tela de Caravaggio só peca no tempo em que cada um atua: o pintor é um marco do fim das trevas medievais. As nossas, ao que parece, ainda se tornarão mais escuras.
A medusa
Mino Carta, na CartaCapital
Caravaggio escolhia seus modelos nas ruas, desde um grupo de jogadores de baralho reunidos à volta da mesa de uma estalagem do arrabalde até a cortesã Fillide Melandroni, iguaria de príncipes e cardeais, personagem de várias telas, entre elas Judite e 0/ofernes. De outro nível era a prostituta com a qual viveu por dois anos, modelo para duas Madonne, a dos palafreneiros e a dos peregrinos. Formosa de traços mediterrâneos, tinha um filho dos seus 5 ou 6 anos, em nada parecido com o icônico Menino Jesus e, no entanto, designado para o papel pelo pintor. Não sei da modelo da Medusa conservada em Florença nos Uffizi, mas ouso supor que a presidente do Supremo Tribunal Federal funcionaria a contento.
A ministra Cármen Lúcia de tudo faz para me espantar. Na segunda 11, no seminário “Trinta anos sem censura: a Constituição de 1988 e a liberdade de imprensa”, disse impávida que “sem imprensa livre a Justiça não funciona
bem, o Estado não funciona bem”. Com candura, perguntei aos meus atônitos botões se porventura, em um repente de sinceridade e insólita sabedoria, teria apresentado as razões da tragédia em que o Brasil precipita como em um abismo sem fundo. Quem se faz de bobo, resmungaram os meus soturnos interlocutores, você ou ela?
A mídia nativa, é do conhecimento até do mundo mineral, defende os interesses da casa-grande, mesmo porque seus patrões são inquilinos da mansão. Esta não é liberdade de imprensa, e sim a obrigação de informar da maneira mais conveniente aos donos do poder. Certo é que no momento a Justiça e o Estado de fato não funcionam. Melhor, foram demolidos pelo estado de exceção gerado pelo golpe de 2016.
A ministra Cármen Lúcia, que preside também o CNJ, promotor do seminário, deita falação sobre um Constituição enxovalhada faz mais de dois anos, brutalmente rasgada, a turvar o sono eterno de Ulysses Guimarães. Há momentos em que a argumentação dos meus botões me soa de total coerência. A presidente do STF acredita realmente que o Brasil vive hoje uma “democracia plena”, onde cada cidadão exerce “sua liberdade de forma crítica e bem informada?” Trata-se de um bestialógico arrepiante, de sorte a justificar sérias dúvidas em relação à saúde mental de quem o desenrola de cara lavada.
Em artigo recente, publicado na Época, Conrado Hubner Mendes, professor de Direito da USP, escreve com rara felicidade: “O estilo de Cármen Lúcia escancarou um costume perverso do STF: a total arbitrariedade do que entra
e do que sai da pauta ( … ) A agenda constitucional do País tornou-se agenda do STF, e quem manda nela é uma única pessoa”. O professor refere-se explicitamente, entre outras situações, ao caso da execução da pena em segunda instância cuja ação deixou de pautar para que a questão viesse à tona “por ocasião do habeas corpus de Lula”. Agora, a ministra Cármen Lúcia aventa a necessidade de uma reinterpretação da Constituição para adequar-se “às transformações vividas nas últimas décadas”. Quem sabe cogite de uma reformulação capaz de consagrar o estado de exceção, o impeachment conforme a vontade da casa-grande, as condenações sem prova, o loteamento do País para entregá-lo ao capital estrangeiro.
A Medusa transformava em pedra quem a encarasse, mas Perseu soube como enfrentá-la instruído por Palas Atena, deusa da sabedoria, que cuidou de presenteá-lo com uma espada e um escudo destinado a refletir o olhar
funesto da criatura monstruosa. Protegido desta forma, Perseu em segurança avançou contra ela e cortou-lhe a cabeça. Um herói mitológico, mais Hércules do que Perseu, talvez pudesse enfrentar a enésima fadiga para consertar o Brasil reduzido a escombros política, econômica e moralmente. Mas, se viesse Perseu, Sergio Moro já o teria condenado e encarcerado antes que ele recebesse os presentes da deusa da sabedoria.