Dois ídolos do ódio racista que a direita promoveu no Brasil, Jair Bolsonaro e Sergio Moro, usaram o dedo do ex-presidente Lula para expressar seus valores.

Bolsonaro imprimiu e difundiu camisetas em que aparece a mão de Lula com quatro dedos, explorando o defeito físico do maior líder popular que o Brasil já teve. Moro, conversando com seus comparsas, se refere ao maior dirigente político que o país tem como “nine”, uma forma depreciativa de mencionar Lula. Condenou Lula, sem provas, a nove anos e meio, achando que era uma ironia sobre os dedos de Lula.

São duas formas de expressão em que se revelam personalidades desprezíveis, odiosas, execráveis, de preconceito e de tentativa de desqualificação de um líder popular, de um operário, de um imigrante nordestino. Coisas que incomodam profundamente a direita brasileira e por isso ela se expressa, através de seus lideres, dessa forma. Expressam bem o que é a elite branca brasileira do centro sul, que se considera dona do país e sempre buscou tratar aos outros – os de origem popular, os do Nordeste, os trabalhadores como bárbaros, selvagens, “mal informados”, como disse o outrora líder dessa gente, o FHC.

A sociedade brasileira teve sempre a discriminação como um dos seus pilares. A escravidão, que desqualificava, ao mesmo tempo, os negros e o trabalho – atividade de uma raça considerada inferior – foi constitutiva do Brasil, como economia, como estratificação social e como ideologia.

Uma sociedade que nunca foi majoritariamente branca teve sempre como ideologia dominante a da elite branca. Sempre presidiram o país, ocuparam os cargos mais importantes nas FFAA, nos bancos, nos ministérios, na direção das grandes empresas, na mídia, na direção dos clubes, nas universidades, nos governos – em todos os lugares em que se concentra o poder na sociedade, estiveram sempre os brancos.

A elite paulista e do sul do país representa melhor do que qualquer outro setor esse ranço racista. Nunca assimilaram a Revolução de 30, menos ainda o governo de Getúlio Vargas. Foram derrotados sistematicamente por Getúlio e pelos candidatos que ele apoiou. Atribuíam essa derrota aos “marmiteiros” – expressão depreciativa que a direita tinha para os trabalhadores, uma forma explícita de preconceito de classe.

A ideologia separatista de 1932 – que considerava São Paulo “a locomotiva da nação”, o setor dinâmico e trabalhador, que arrastava os vagões preguiçosos e atrasados dos outros estados – nunca deixou de ser o sentimento dominante da elite paulista em relação ao resto do Brasil. Os trabalhadores imigrantes, que construíram a riqueza de São Paulo, eram todos “baianos” ou “cabeças chatas”, trabalhadores que sobreviviam morando nas construções – como o personagem que comia gilete, da música do Vinicius e do Carlos Lira, cantada pelo Ari Toledo, com o sugestivo nome de pau-de-arara, outra denominação para os imigrantes nordestinos em São Paulo.

A elite paulista foi protagonista essencial nas marchas das senhoras com a igreja e a mídia, que prepararam o clima para o golpe militar e o apoiaram, incluindo o mesmo tipo de campanha de 1932, com doações de joias e outros bens para a “salvação do Brasil” – de que os militares da ditadura eram os agentes salvadores.

Terminada a ditadura, tiveram que conviver com Lula como líder popular e o Partido dos Trabalhadores, contra quem canalizaram seu ódio de classe e seu racismo. Lula é o personagem preferencial desses sentimentos, porque sintetiza os aspectos que a elite paulista mais detesta: nordestino, não branco, operário, esquerdista, líder popular.

Não bastasse sua imagem de nordestino, de trabalhador, sua linguagem, seu caráter, está em sua mão: Lula perdeu um dedo não em um jet-sky, mas na máquina, como operário metalúrgico, em um dos tantos acidentes de trabalho cotidianos, produto da super exploração dos trabalhadores. Está inscrito no corpo do Lula, nos seus gestos, nas suas mãos, sua origem de classe. É insuportável para o racismo da elite branca brasileira.

Essa elite racista teve que conviver com o sucesso dos governos Lula, depois do fracasso do seu queridinho – FHC, que saiu enxotado da presidência – e da sua sucessora, Dilma Rousseff. Teve que conviver com a ascensão social dos trabalhadores, dos nordestinos, dos não brancos, da vitória da esquerda, do PT, de Lula, do povo.

O ódio a Lula é um ódio de classe, vem do profundo da burguesia paulista e do centro sul do país e de setores de classe média que assumem os valores dessa burguesia. O anti-petismo é expressão disso. Os tucanos foram sua representação política e a mídia privada seu porta-voz.

Da discriminação, do racismo, do pânico diante das ascensão das classes populares, do seu desalojo da direção do Estado, que sempre tinham exercido sem contrapontos. Os Cansei, a mídia paulista, os moradores dos Jardins, os adeptos de FHC, de Serra, de Moro, dos otavinhos – derrotados, desesperados, racistas, decadentes.

Na crise atual, a burguesia e setores da classe média do centro sul protagonizaram algumas das cenas mais vergonhosas da história brasileira, nas manifestações contra a democracia, a favor do golpe e da ditadura militar, exibindo suas dimensões mais fascistas e discriminatórias. Colocavam pra fora o ódio contra os que tinham regulamentado o trabalho das empregadas domésticas, que já não serviriam à opressão e à exploração indiscriminada das patroas. Contra os que tinham transformado o Nordeste, que tinham aberto as universidades para os jovens pobres, contra os que tinham permitido aos pobres de viajar para ver seus parentes ou para fazer turismo. Contra os que fizeram do Brasil um país menos injusto, menos desigual, contra os que tiraram o país do Mapa da Fome, a que as elites brancas tinham condenado o povo para sempre.

E Lula sempre foi e continua sendo a expressão mais alta desse movimento de democratização social do Brasil. Gente como Bolsonaro e Moro ofendem a Lula porque sabem que assim ofendem ao povo, aos trabalhadores, aos nordestinos. Tentam desconhecer que a indústria brasileira foi construída com as mãos de operários como Lula, que os carros em que eles passeiam foram construídos por trabalhadores como Lula. Que o dedo que Lula perdeu são os muitos dedos que os acidentes diários de trabalho provocam nos trabalhadores, para sobreviverem com baixos salários e produzir as riquezas do Brasil.

O racismo é um crime imprescritível. Bolsonaro e Moro são os herdeiros do político do sul que disse que “iam acabar com essa raça por décadas”. Deveriam ser processados por racismo, ao exibir essas camisetas com Lula sem um dedo e ao falar de Lula como “nine”. São seres desprezíveis, odiosos, execráveis, do pior que o Brasil tem, pelo ódio de classe ao povo, aos trabalhadores, aos nordestinos, pelo ódio ao Brasil.

Nós nos orgulhamos de Lula como eles não podem se orgulhar de seus ídolos, promotores do estupro de mulheres e agentes fascistas contra os partidos e líderes de esquerda, contra a própria democracia, que é e será fatal para eles.

 

* Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros

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