Ser ex-ex-gay – Por Carlos Alberto Mattos – Carta Maior

John Paulk era um rapaz gay de Portland (EUA) que resolveu se “curar”. Entrou para a organização Exodus, criada nos anos 1970, que advogava a “terapia reparativa ou de conversão”. Tornou-se uma estrela do movimento ex-gay na mídia e nas convenções da organização. Dando-se por “curado”, casou-se com uma ex-lésbica e teve filhos. Um belo dia, foi flagrado num bar gay e virou motivo de escândalo. A partir daí, ele e a Exodus não seriam mais os mesmos.

John é o caso mais exemplar entre os vários narrados no documentário Pray Away, em cartaz na Netflix. Há outros, como o de Yvette Cantu, que chegou a ser representante da Family Research Council em Washington, fazendo palestras sobre o “erro”, a “doença” do homosseuxalismo. Depois da “desconversão”, ela se mantém casada com o marido e assumida como bissexual. Agora é uma ex-ex.

O título Pray Away, que pode ser traduzido como algo próximo de “exorcismo”, se refere ao mote “pray away the gay” do movimento homofóbico, conduzido majoritariamente por entidades cristãs e organismos conservadores. Através dos depoimentos dos chamados sobreviventes da terapia e de um bom material de arquivo, o filme de Kristine Stolakis retraça um painel assustador. Os participantes passam por uma doutrinação cerrada no sentido de se amoldarem ao que seria “a intenção original de Deus”. A retórica envolve argumentos científicos toscos e o apelo de uma certa “liberdade” que estaria somente na plena heterossexualidade.

A “terapia” (preciso usar muitas aspas neste texto) inclui sessões de exorcismo à moda evangélica, conclamações a Jesus, dança de guerreiros e demonização das escolas, onde estaria o germe da orientação gay. Qualquer semelhança com o “kit gay” é apenas mais um sintoma da colonização da direita brasileira pelos americanos.

O resultado foram auto-enganos, mentiras públicas, muito sofrimento ocultado, suicídios e traumas que levaram à necessidade de outras terapias. Uma das sobreviventes relembra episódios de automutilação por conta de sua crise de identidade durante o processo.

A Exodus foi dissolvida em 2013, quando seus líderes foram forçados a admitir os males que causaram a milhares de pessoas e a si mesmos. Mas o modelo não saiu de cena. Em contraponto aos sobreviventes que contam suas histórias de conversão e desconversão, temos um personagem que encarna a perpetuação da prática ainda hoje, convocando fiéis na rua e organizando “Marchas da Liberdade”.

Pray Away tem recorte clássico de documentário americano: uma narrativa bem construída e amparada por cenas de arquivo que dispensam muito comentário oral. No entanto, fica a impressão de que coisas importantes deixaram de ser contadas. As motivações dos personagens para abandonar o movimento e assumir suas orientações sexuais nem sempre ficam claras. Assim como as razões que levaram à dissolução da Exodus. De uma coisa não resta dúvida: os que deixaram o culto homofóbico para trás não abrem mão do culto ao arrependimento. Esse, afinal, é um dos pilares da ética e da dramaturgia americanas.

>> Pray Away está na Netflix.

Trailer sem legendas:

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