Não é a seca, é o capital! Conheça o incrível deserto que está sendo construído pelo homem no Norte de Minas.

 Por Ricardo Targino –Mídia NINJA*

Há um desastre ambiental em curso no norte de Minas Gerais. O acelerado processo de desertificação que vem provocando a escassez de água e ameaçando a vida dos povos que há 13 mil anos habitam aquele território não é resultado da falta de chuva. É obra da ação predatória do capital, da ineficácia do Estado, da falta de uma política pública de educação ambiental e da inexistência de um projeto de desenvolvimento sustentável compatível com a realidade do mítico sertão mineiro.

SEM VEREDA, NÃO HÁ SERTÃO

 Os Grandes Sertões, já imortalizados pela literatura roseana, estão padecendo com a morte de suas veredas, oásis deslumbrantes que emergem na paisagem árida para oferecer abrigo e água ao sertanejo e aos animais do cerrado, da caatinga e da mata atlântica que coexistiram historicamente ali. As consequências severas dessa tragédia já se traduzem em danos irreparáveis ao ecossistema e às populações de dezenas de cidades do norte de Minas e do oeste baiano.
Por incrível que pareça, ao longo dos cem últimos anos os índices pluviométricos se mantiveram relativamente estáveis naquela parte do Brasil. Chove cerca de mil milímetros cúbicos por metro quadrado na região. A oferta de água, portanto, não sofreu grandes alterações ao longo dos anos. O que aumentou signitivamente foi a demanda.
Para entendermos esse processo é preciso examinar o modelo de desenvolvimento regional e as modificações tanto no uso dos recursos hídricos, quanto na ocupação do território e na atividade econômica. Um complexo conjunto de fatores que, combinados, já secaram rios e comprometeram lençóis freáticos, deslocando animais, alterando a vegetação, desequilibrando o bioma e inviabilizando a agricultura familiar e a permanência das famílias mais pobres no campo.

SEM ÁGUA, NÃO HÁ VIDA

A questão da disponibilidade de água e do uso dos recursos hídricos é estratégica no século XXI, não apenas nas regiões de maior escassez de chuva, mas para toda a humanidade e para a própria vida no planeta. É sempre bom lembrar que somos dois terços de água, tanto nós humanos como a própria Terra.
De toda a água existente no mundo, 97,5% está nos oceanos e só 2,5% corresponde a água doce, sendo que 1,72% está congelada nas calotas polares, 0,75% corresponde a águas subterrâneas e 0,02% está contida em plantas e animais. Sendo assim, só 0,01% da água do planeta está disponível em rios, lagos e represas. É isso mesmo: do total de toda a água do planeta Terra, apenas 0,01% corresponde a água doce superficial. Como ela é essencial à vida, não há recurso mais estratégico que a água e o capitalismo sabe muito bem disso.


Desde o ano de 1696, a mineração está na base da matriz econômica de Minas Gerais. Do ciclo do ouro, à exploração do ferro e produção de aço, são mais de três séculos de atividade predatória impactando sobre o território e sobre a disponibilidade de recursos hídricos.
A guerra da água já não é mais ficção nem futuro hipotético. No Norte de Minas, ela já começou!
De Belo Horizonte a Montes Claros, Grande Sertão adentro, imensas plantações de eucalipto tomam a paisagem. Monocultura baseada no latifúndio e na grilagem que engana o viajante e oferece um verde artificial à paisagem. Essa enorme área de cultivo não visa a produção de desinfetantes nem essências, mas o abastecimento da atividade siderúrgica. A maioria das espécies de eucalipto, por ser de rápido crescimento e atingir a idade adulta em 7 anos, necessita de água para manter altos incrementos em madeira. Se é verdade que o eucalipto não tem um consumo de água muito maior que as espécies da mata atlântica, é verdade também que seu cultivo em escala industrial no semi-árido mineiro tem efeitos devastadores no ecossistema da região, estando acima do consumo de água das espécies nativas do cerrado, da caatinga e de mata seca remanescente da mata atlântica que coexistem no sertão mineiro.

A mineração, portanto, depende de elevada disponibilidade de recursos hídricos tanto na extração mineral quanto no beneficiamento do matéria prima extraída. Ela modifica a fitofisionomia da região, altera a paisagem e impacta drasticamente tanto na disponibilidade de água superficial quanto nos lençóis freáticos.
Além do eucalipto, a construção de barragens e a explosão do uso de água subterrânea extraída por poços artesianos também estão na raiz da escassez dos recursos hídricos que já condena a população ao racionamento e à falta de água. O crescimento descontrolado da extração de água subterrânea traz consequências sérias também para a disponibilidade de água superficial, secando nascentes e rios, matando as veredas e inviabilizando a vida dos animais que são obrigados a se deslocar para a margem do São Francisco onde se tornam presas mais fáceis da caça predatória. Uma verdadeira tragédia que permanece invisível, ao mesmo tempo em que exige de nós ações emergenciais.
Enquanto o poder público e a sociedade civil tardam em agir, o fogo consome o que a falta d’água ainda não matou. A maior vereda em extensão e área contínua de Minas Gerais, a Vereda Grande, localizada entre o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu e o Parque Estadual Veredas do Peruaçu, com cerca de 700 hectares de oásis em pleno sertão vem sendo consumida há 7 meses pelo fogo que já destruiu mais de 500 hectares daquele oásis no sertão. O cenário é de guerra e brutal devastação. A tristeza e a desesperança das famílias do campo fez restar apenas idosos e crianças no território, levando pra longe da terra a juventude e a força de trabalho, incrementando a vulnerabilidade de milhares de sertanejos.

Não muito distante dali, enquanto a comunidade local e produtores rurais não são sensibilizados, diante da ineficácia do Estado e dos órgãos de controle e preservação ambiental, a região conhecida como Pantanal Mineiro, na bacia do rio Pandeiros, um dos aquíferos do São Francisco, é o gado quem avança sobre o pântano assoreado e seco. Ocorre que a área antes alagada é um dos principais berçários de peixe da região, sendo nascedouro de cerca de 70% dos peixes do Médio de São Francisco. Os danos socioambientais e suas profundas consequências na bacia do São Francisco já são irreparáveis.

AINDA ESTAMOS VIVOS

Para os povos do Geraes, sertanejos, veredeiros, vazanteiros, ribeirinhos, quilombolas e indígenas da nação xacriabá cujo direito originário à terra foi reconhecido ainda no império por Dom Pedro II em documento de doação, o fim do mundo já começou e avança veloz comprometendo o território e ameaçando a sobrevivência. Mas enquanto há vida, haverá resistência, afinal como assegura Guimarães Rosa no Grande Sertão Veredas: “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus, mesmo, se vier, que venha armado.”
O desastre socioambiental e o drama humano no Norte de Minas não são fruto do abandono de Deus, nem castigo do Diabo, sequer diz respeito à falta de chuva ou consequência das mudanças climáticas que já afetam todo o planeta. Na raiz do problema, está o capitalismo predatório, o desenvolvimento insustentável e o descontrole no uso dos recursos naturais, a atividade econômica irresponsável, a pilhagem dos recursos hídricos tanto superficiais quanto subterrâneos, o uso irregular do solo e a ineficácia do Estado na preservação do bioma e na educação ambiental das comunidades que habitam o território.

Enquanto houver vida, haverá resistência e os povos do sertão já articulam a legítima defesa da vida de suas comunidades e de seu território. Desconstruir mitos, identificar as causas e contra-atacar o capital que promove a degradação ambiental acelerando a desertificação é uma luta que já começou. A expedição Caminhos dos Geraes apontou caminhos para as instituições do Estado e para a ação ambientalista da sociedade organizada e já articula uma agenda concreta de medidas emergenciais para conter o fim do mundo e reverter a fatalidade do desastre.
A guerra da água já não é ficção, mas uma realidade cotidiana para a gente dali. O humano catrumano se recusa a morrer e no Norte de Minas a humanidade já disputa com o capitalismo predatório não mais um futuro hipotético, mas seu presente, sua sobrevivência, seus modos de vida, seu território, seus corpos.
Convém jamais esquecer: o sertanejo é antes de tudo um forte.
Venceremos!

*Ricardo Targino é realizador de cinema e TV, midiativista e agitador cultural.

Fotos: Lucas Aniceto / Mídia NINJA

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