A vitória de Lula no STF foi maior do que se imagina. A lente do ceticismo que, de maneira compreensível nos toma a todos, impediu que assimilássemos sua dimensão real. E quem nos forneceu gratuitamente a “chave” dessa dimensão, ironicamente, foi a imprensa tradicional.

Ela interpretou o resultado com mais acuidade e interesse – e com profunda lamentação. A nossa leitura, acostumada com “derrotas” seguidas, não quis codificar o que estava diante de si: uma vitória espetacular.

A “mera” aceitação deste habeas corpus leva o processo de Lula ao labirinto infinito das subjetividades do Supremo. Isso eleva o cenário das possibilidades à décima terceira potência – o que continua sendo arriscado, mas agora para os dois lados.

Agora, pode-se pedir vista, pode-se adiar, pode-se enxertar, enfim, pode-se criar um debate sem fim. Sérgio Moro sofreu o seu maior cala-a-boca até aqui e ficou com a broxa na mão. A imprensa sabe que, a partir deste momento, o STF ficou menos manipulável. Em outras palavras: a infinitude narrativa migrou da Lava Jato para o STF.

O instante se traduz pela seguinte equação: o bloco do golpe terá de pressionar , daqui por diante, ministro por ministro – e não só a “adestrada” Cármen Lúcia. Isso gera muito mais trabalho e resulta em sub chantagens que escapam ao mundo controlado da ‘realidade’ golpista.

A confortável operação sangrenta de caça à Lula, portanto, foi lançada ao imponderável das crises existenciais que subjazem às ilhas supremas do nosso tribunal máximo, tão bipolar quanto irritadiço. Era tudo o que o golpe não queria.

O ethos histórico de um defensor

Essa vitória também atende pelo singelo nome de um veterano magistrado. A defesa de Lula conta com estrelas de primeiríssima grandeza, como Cristiano Zanin, Valeska Teixeira e Sepúlveda Pertence. Mas, eis que, aos 45 do segundo tempo, entra em campo um defensor que parecia estar guardando seu talento para aplicá-lo justamente neste preciso instante.

José Roberto Batochio colocou o STF no bolso. Fez uma defesa impecável, histórica, contundente, técnica e, ao mesmo tempo, inflamada. Sua voz incorporou o sentido geral de sua dicção: levemente afônica, com falhas específicas, quase calculadas. Um “granulado” vocal que hipnotizou o ministros.

O som se somou ao sentido porque aquele conjunto de “falhas” são decorrentes de densidade emocional, não de afonia por desgaste físico. Batochio impregnou o STF com sua voz e com sua erudição controlada e prática. Foi uma aula, um raro momento de soberania intelectual naquele tribunal que se autodegradou tanto de dois anos para cá.

Na esfera do conteúdo propriamente dito Batochio foi sutil como uma lâmina de aço forjado em dobras: invocou nada mais nada menos que Chrétien-Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, o defensor de Luís XVI.

Narrou a tensão que cercava a defesa do magistrado francês no longínquo ano de 1792, mobilizando assim um conjunto de sensibilidades difusas em sua audiência, desde o banho de sangue da revolução francesa até a cifra trágica de se evocar um defensor que foi guilhotinado.

Feita essa complexa armadilha retórica, citou em francês a frase que deve estar ecoando até agora nos ouvidos dos ministros:

“J’apporte à la Convention la vérité et ma tête. Elle pourra disposer de ma vie quand elle aura entendu mes paroles”. Tradução: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça. Poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira”.

Está aberta a nova temporada de caça aos ministros

Ao dispor dessa tática de persuasão mais agressiva e passional, habitante histórica do próprio direito, Batochio impôs seu regime de sentido àquele tribunal. Pode-se ver a sessão quantas vezes quiser: o que ficará impregnado na memória e no juízo é a fala de Batochio.

Não bastasse o tom, a dicção, o conteúdo e a própria voz – significada na semiótica da respiração – Batochio ainda cometeu o abuso de improvisar: diante do iminente adiamento do mérito, pediu de maneira inesperada uma salvaguarda para seu cliente, de maneira a protegê-lo até o momento da decisão do Habeas Corpus propriamente dita.

Este pulo do gato jurídico – absolutamente legal e previsto na letra – devastou o horizonte azul-tucano do prosseguimento do golpe. Porque ele gera cenários mais complexos do que o mérito em si poderia gerar. A admissibilidade do Habeas Corpus reabre a temporada das pressões.

De uma certa maneira, repete a institucionalidade teatralizada do impeachment de Dilma Rousseff, mas, agora, diante de outra conjuntura política: o desgaste monumental do usurpador da república, do próprio STF e do próprio instituto das eleições majoritárias, na iminência de sua realização.

Não bastasse essa pletora de complicadores, o réu é nada mais nada menos do que o franco favorito a ser reconduzido ao cargo de presidente da república, além de estar indicado ao prêmio Nobel da Paz e de ter a atenção máxima da imprensa mundial que, diferentemente da brasileira, não tem rabo preso nem exerce pressões diretas naquele tribunal – senão as pressões legítimas da opinião pública internacional.

A dança das pressões

O STF re-encontrou, por assim dizer, sua razão de ser. Ele subtrai o protagonismo pálido e cansado de Sergio Moro e da Lava Jato – que arrasaram não só a economia, mas todo o ordenamento jurídico do país – e volta a tentar praticar algum tipo de direito com base na constituição.

Mais do que isso. O 7 a 4 de Lula tira de Cármen Lúcia o controle irrestrito dos prazos daquela corte. É por isso que a imprensa tradicional se quedou paralisada diante da decisão supracitada. Ela sabe que a narrativa do golpe sofreu um estilhaçamento. São 11 ministros. Enquanto se pressiona um, distensiona-se outro e assim por diante.

Não há energia suficiente – nem com todos os prêmios e minutos de jornal nacional – que dê conta de 11 ministros e suas respectivas vaidades e bipolaridades. Essa é a lógica, afinal, de um tribunal superior: sua indomesticação (ainda que por motivos meramente humanos, demasiadamente humanos).

Diante desta realidade, impõe-se obrigatoriamente o poder de convencimento e a inteligência, justamente os dois atributos que a defesa de Lula conseguiu mobilizar.

O debute dramático de Raquel Dodge

Vale o registro: diante da fala monumental de Batochio, não havia muito o que Raquel Dodge fazer. Mas, o desenrolar da sessão foi muito mais dramático do que isso. Raquel Dodge debutou para o país. Foi sua primeira intervenção de destaque nacional. E foi a pior performance que um procurador-geral da república poderia ter a infelicidade de experimentar.

Dodge gaguejou, errou (foi corrigida por Marco Aurélio) , vacilou e demonstrou que mal estudou a questão, num gesto de profundo desprezo pela corte que, ademais, é o que mais importa naquele lugar – negativamente, é óbvio.

Chegou a causar comiseração. O país não conhecia esse “destalento” de nossa ‘incensada’ procuradora, tão elogiada por Michel Temer que foi. Restou a Dodge a profusão infinita de memes e o papel de nova sub celebridade jurídica no concorrido mundo do direito brasileiro – que já conta com Janaina Paschoal e Sergio Moro.

A disputa sangrenta pela narrativa

Aliás, esse é outro ponto que merece um comentário. Máscaras caíram nesta sessão histórica. Poder-se-ia dizer: a realidade política brasileira mudou de novo. Mais do que representar a liberdade de Lula, o STF chocou a imprensa nativa e desorganizou todo o cenário costurado anos a fio para o encarceramento pirotécnico do ex-presidente.

Isso causa um certo pânico nas fileiras do golpe. E por uma razão muito simples: o que se perde não é propriamente a janela de um prisão cinematográfica antes das eleições. O que se perde é a narrativa. Este é o elemento de disputa mais sensível deste momento.

Todos estão em busca da “narrativa”. É por isso que a Globo investiu todo o seu jornalismo na cobertura enviesada da execução de Marielle Franco. Eles viram em Marielle a chance de retomar um sentido já perdido, qual seja: o de estar ao lado do povo.

Ocorre que a estratégia, além de não dar muito certo – a rejeição à Globo continua com viés de alta – encontrou mais esse obstáculo: a perda de outro elemento narrativo: o garantismo temático do golpe – que seria a prisão e humilhação de Lula.

A população está no jogo

De sorte que as coisas não estão fáceis nem para a Globo e nem para a imprensa nativa de maneira geral neste momento. A eleição se aproxima e o desespero toma conta de um consórcio do golpe que não tem sequer um nome competitivo para estampar na cédula eleitoral.

A população brasileira, embora não esteja nas ruas como muita gente desejaria, está presente nas pesquisas e no clima generalizado de rejeição ao golpe. Isso é participação popular, sem a menor sombra de dúvida.

A população está dizendo: não tentem mais nenhum tipo de golpe. Nós estamos aqui e já deixamos claro quem nós queremos na liderança deste processo de retomada da história e da democracia.

A trágica execução de Marielle, de repercussão internacional, reacendeu essa chama de resistência e caráter da população brasileira, além de chamar a atenção da imprensa mundial para o que está ocorrendo aqui no Brasil em todos os sentidos.

Marielle estava presente naquele tribunal em que Batochio evocou a revolução francesa. Não poderia não estar. O crime de execução chocou todos os ministros porque chocou todos os brasileiros. O crime de execução foi intimidatório, foi em forma de recado, foi carregado de simbologia e de saturação deste golpe que destruiu toda a estrutura econômica e social do país.

A retomada do raciocínio democrático

Há um sentimento profundo de esgotamento desta narrativa lavajateira. A exceção dos odiadores profissionais de praxe, minoria tão ruidosa quanto insignificante, o país inteiro quer retomar seu raciocínio democrático e seu rumo histórico.

A vitória de Lula no STF, repleta de significado, precisa ser devidamente dimensionada. Ela é uma imensa pedra no sapato do golpe. Ela fere a narrativa assaz conhecida, pré concebida e controlada. Ela nos remete de volta a um fio de realidade, ao curso mais natural dos acontecimentos, à narrativa coletiva, democrática, consequente e com um mínimo de legitimidade.

Tudo está afluindo para esse momento. A imprensa trava sua relação conturbada com as redes sociais, as usinas de fakenews vão sendo desmascaradas (MBL e derivações), os candidatos do golpe vão se colocando – de maneira constrangedora, não importa – e a personagem mais resiliente de todo esse processo vai mostrando que ainda pode surpreender mais uma vez, não bastasse sua vida ser a própria surpresa encarnada, do nascimento às caravanas.

Como a garganta embargada – mas assertiva – de José Roberto Batochio, o brasileiro está com seu grito entalado na garganta. Ele teme soltar esse grito pois o cerco a que foi submetido contra sua vontade – a imposição de uma política que não foi escolhida em nenhuma urna – ainda grassa e ameaça, seja com os executores de Marielle, seja com o abandono de soberania em uma empresa como a Embraer, seja com o extermínio dos direitos trabalhistas.

Nesse sentido, Batochio tem ao menos mais cem milhões de colegas defensores de Lula. Todos que depositam sua esperança em Lula através das pesquisas de opinião estão lhe emprestando também a mais comovente e genuína defesa, a defesa que nasce diretamente do povo. Por isso, a importância da vitória, por isso a necessidade de comemoração, por isso o momento oportuno de reapropriação da narrativa.

Ali, da tribuna, José Roberto Batochio, por sua vez, também representou mais de cem milhões de brasileiros. Talvez o embargo e a profunda emoção que se apoderou de sua voz decorra das milhões de vozes que estavam ali também representadas.

Batochio investiu-se de autoridade e força retórica ao citar Malesherbes. Mas, certamente, Malesherbes também foi investido de profunda honra jurídica ao ser invocado por Batochio. Quem faz o protagonismo de seu tempo se conecta de maneira simétrica com seu antepassado. Que a coragem e a paixão de Batochio nos sirva de inspiração para os próximos passos em busca da narrativa democrática e da legitimidade republicana.

Gustavo Conde é músico, linguista e professor. Lida com teorias do humor e com os processos de produção do sentido político. É autor do Blog do Conde, espaço de discussão de temas políticos, acadêmicos e literários

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