Atletas que ficam longe de suas famílias e muitas vezes vêm da pobreza irreversível encontram na religião de vestiário a paz de que precisam. Isso parece bom, mas quem é o padre ou o pastor? Diante e a despeito do déficit educacional de quem luta contra a miséria e corre pelo futebol (quem é o professor?), quem, afinal, eu ouço?

O futebol brasileiro, como reflexo da sociedade em que está inserido, é banhado em um confuso sincretismo religioso. A partir dos anos 80, com os primeiros sinais de um movimento chamado Atletas de Cristo, a fé dentro dos vestiários ganhou mais força e ordenação. Rompeu fronteiras. Silas, um de seus expoentes, levou os Atletas de Cristo nos anos 90 para a Argentina, onde, atuando pelo San Lorenzo, teve até programa próprio de TV para falar sobre essa confraria numerosa de atletas religiosos.

No Brasil, fora do futebol, a TV foi inundada pouco a pouco por pastores e outros religiosos de credibilidade duvidosa e charlatões da fé profissionais. Estes, ao se tornarem porta-vozes de interpretações controversas sobre os preceitos bíblicos, criaram gerações de devotos confusos. É onde o Brasil está ‒ queimando terreiros e elegendo prefeitos medievais.

No futebol, o apego a um Deus Salvador se baseia em no mínimo duas premissas. Uma delas diz respeito à incerteza que o jogador tem sobre seu futuro. Ele passa a juventude sonhando com um estrelato que não lhe é garantido. São anos de angústia remediada com fé no Altíssimo. Outra versa sobre os exemplos de atletas ricos, famosos e que perderam tudo, supostamente por uma vida sem regras nem uma liderança espiritual. Atletas que ficam longe de suas famílias e muitas vezes vêm da pobreza irreversível encontram na religião de vestiário a paz de que precisam. Isso parece bom, mas quem é o padre ou o pastor? Diante e a despeito do déficit educacional de quem luta contra a miséria e corre pelo futebol (quem é o professor?), quem, afinal, eu ouço?

Segunda-feira, em conversa com Paulo Junior, comentamos como oito em cada 10 “músicas do Fantástico”, pedidos de quem faz três gols no domingo, são músicas de culto. Isso está posto, é parte do futebol brasileiro, inclusive em suas distorções ‒ há relatos de estranheza em vestiários pelo Brasil de jogadores de fé “minoritária”. O amparo espiritual nunca seria uma má notícia se não fossem algumas péssimas lideranças.

Chu, atacante do Palmeiras, ex-Ferroviária e ex-São José, recentemente convocada para a Seleção Brasileira como ala, se expressou no último domingo de maneira que chocou todo o futebol feminino, em raro caso de manifestação imediata e contrária até de companheiras de equipe. Ela comentou que o ator Paulo Gustavo, assassinado pelo governo do Brasil via Covid, iria para o inferno por ser gay. Ela ouviu isso repetidamente ao longo da vida. Foi condicionada a ter essa interpretação da Bíblia, não alguma outra que proteja os preceitos do amor ou ao menos considere que ela, a Bíblia, foi escrita há 2 mil anos e, portanto, não prevê dinâmicas do mundo contemporâneo. Como você resolveria uma situação dessa?

Porque o futebol feminino, ao contrário do masculino, maneja com muita coragem o tema da homossexualidade. Não é um tabu para elas. Ao contrário, é tema que as une e fortalece, que empresta a elas um sentido coletivo muito interessante. Minha cabeça dá um nó tentando entender como é um dia normal na vida de Chu, que trabalha em ambiente com várias companheiras que, para ela, irão para o inferno, impuras e indignas que são, de acordo com o que um padre ou um pastor medieval martelou ‒ e aqui cabe lembrar que Chu, mesmo com qualquer déficit educacional e ainda que tomada pelo fanatismo religioso, é uma mulher adulta e plenamente capaz de, individualmente, ser responsabilizada pelo preconceito terrível que difunde. Sondar a raiz da questão não a isenta de ter sido agressiva e bruta com muita gente.

Não muito tempo atrás, o público mais distante do futebol feminino ficou chocado em saber que Marta, a maior de todas, tinha namorada. Pia, técnica da Seleção, que convocou Chu, também tem. Inferno? Vão todas para o inferno encontrar um dia Paulo Gustavo? Que lugar é esse?

Esse lugar chamado inferno não é físico. Do ponto de vista material, não existe. Sua existência se dá a partir do que a gente acredita que acontece após a morte ‒ e daí a letra interpretada da Bíblia demanda muita responsabilidade de quem media conversas religiosas com fiéis. Se essa conversa se dá pautada no medo, na histeria, na chantagem emocional, na culpa, o inferno passa a fazer morada dentro do peito de quem é inundado por isso tudo.

Chu fala de um inferno metafísico com tamanha maldade e insensibilidade, que a gente quase enxerga nisso, enfim, um inferno físico. Um inferno que nos trava de verdade, nos prende de verdade, e do qual somos herdeiros e hospedeiros. Esse inferno é inquilino. Quem prega o ódio em um altar é o corretor desse imóvel sagrado que é o nosso coração.

Via Ultrajano

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