No último dia 20 de julho de 2020, recebemos com indignação a notícia triste da morte de uma grande amiga. A fausta informação chegou da vizinha cidade de Montes Claros. Tratava-se da morte de nossa conterrânea, querida e estimada amiga, Marilene Drumond Lemos, depois de longa enfermidade. Há dois anos ou mais, ela não mais assistia a passagem da procissão do Senhor do Bom Fim, da porta de nossa casa. Outrora, ela fora nossa vizinha de frente, na antiga rua D. Pedro II, hoje José Brandão Filho em Bocaiuva (MG), por muitos anos, até se casar com o gentleman Augusto Lemos e de se mudar para Montes Claros.
A vivenda de Geralda de Sérvulo, sua mãe, era imensamente festiva e farta. Tanto que o forno de lá para produzir quitandas, principalmente, funcionava o dia todo e varava uma parte das noites – enluaradas ou não. Assava também nele: biscoitos de goma, bolos, broas, e, noutras vezes, as tantas carnes assadas. Saborosas eram as paçocas de carne de sol e da farinha do Morro Alto, socadas no pilão pela então jovem Noeme.
Abundância maior era quando os carros de bois vinham lotados da Fazenda Pé do Morro, que era deles. Sacos de feijão, de arroz vermelho, bandas de carne de porco, balaios de pequi, latas com mangabas e outros balaios com muitos panãs. Às vezes, um carro de bois trazia só lenhas da madeira murici e de tingui, um alimento para a boca voraz do fogão caseiro. De outra vez, para suprir às necessidades do forno de alvenaria da casa de morada. Nas nossas infâncias e início de nossas juventudes, era um vai e vem quase o dia todo – de nossa casa para lá e vice versa. Havia uma conhecida reciprocidade, tanto nas abundâncias como nos afagos entre os vizinhos. Lembrando-se que Helena Storino, nossa mãe, era filha de italiano, tendo também uma mesa e cozinha fartas e supimpas…
Geralda Pimenta Drumond era casada com Sérvulo Drumond, daí o seu apelido informal e familiar. Sérvulo tinha uma venda em um cômodo grudado à farturosa residência deles. A venda era comprida e estreita e, via de consequência, o balcão era compridão. Ali se vendia cereais, rapadura, farinha, fumo de rolo, toucinho e bebidas, principalmente a Jurubeba Leão do Norte e o Gemado SOS. Havia o querosene, que vinha em latas de 20 litros e delas eram retirados litros e garrafas do produto, na chamada vendagem miúda daquele líquido de odor muito forte. Sábado, dia de feira, crescia o movimento em todas vendas nas cercanias do Mercado Municipal
Ao meio dessa diversificação, também se vendia doces e cremes fabricados pela dona Geralda e pelas suas filhas. Tal venda comercial ficava ao lado de um beco que saía da antiga D.Pedro II em direção ao fundo do antigo Mercado Municipal. Quando eu ainda menino e curioso, ia pra lá aos domingos para ouvir histórias e estórias trocadas entre Sérvulo e o Dilo Maia. Os dois sentados no balcão e eu também e bem comportado.
As conversas que mais me agradavam eram as das supostas ou verdadeiras viagens de Sérvulo ao Estado de Goiás, onde ele estivera como viajante ou cometa. Levara, como outras vezes, a sua tropa de burros carregada de muitas mercadorias do sertão do Norte de Minas, para venda ou troca naquele enorme Estado. Ele descrevia com emoção e com algum sentimento de revolta, a vez que havia sofrido uma pilhagem de seus bens, pelos aliados do revoltoso Izidório Dias Lopes. Foram também lhe subtraídos alguns burros da sua tropa, “requisitados” pelos rebeldes. Um grande prejuízo, mesmo naquela época.
Invejável era a prole do saudoso casal, Sérvulo e dona Geralda, começando pelo Moacir, Maria José, Mário, Marilene, Biu, Washington, Manoelzinho e Marluce. Era comum, em antanho, os casais terem tantos filhos e filhas. E eles e elas principalmente, aliviavam com os seus adjutórios as enormes tarefas caseiras. Porém, nos tempos de agora, mesmo as mulheres mais pobres e de pouca instrução já se preocupam com a fertilidade após o nascimento do primogênito. Hoje, são excepcionalmente incomuns as famílias com mais de três filhos.
Colado ali, vivia o lendário e extraordinário casal, Dema Menezes e Benzim, os dois que prestaram relevantes serviços sociais à cidade de Bocaiuva. Dema Menezes foi eleito vereador e o criador do chamado Hospital dos Tuberculosos de Bocaiuva.
Os filhos e filhas eram: Francisquinho, Maria Carmem, Paulo Ricardo, Marco Túlio, Demazinho, Eduardo e Regina Helena. Não pode esquecer-se da espetacular “Maria das Bonecas”, que foi para lá moçoila, sobreviveu ao casal, tornando-se famosa na cidade. Benzim (Geralda Drumond Menezes) era irmã de Sérvulo Drumond. Hoje, ela é nome de uma Rua em Bocaiuva, perto do Hospital Municipal Doutor Gil Alves. Dema deu o seu nome: Waldemar Valle de Menezes ao Centro Esportivo de Bocaiuva.
Logo abaixo, o casal Heitor Octaviano e Lulu que só tivera a bela filha Cleonice ou Cléo. Heitor era um homem de boa cultura e de notáveis predicados. Viera da culta cidade de Pitangui, para ser “Guarda Livros” da empresa Dolabella Portella, cuja sede era em Granjas Reunidas do Norte. Poeta, ele escreveu belos poemas, que foram publicados em o “Jornal das Moças”, do Rio de Janeiro e no Jornal de Granjas Reunidas.
PRÓLOGO
Era manhã de abril ridente.
Trazia a viração, das floridas campinas,
Numa caricia leve enternecidamente,
O rescendente odor das flores matutinas…
E ao beijo do fulvo sol nascente,
Nos lírios em botão, nas cândidas boninas,
Tremulavam subtis encantadoramente,
Da orvalhada nocturna, as gottas crystallinas.
E um poeta, um sonhador, idealizando um sonho
Gozava sorridente, esse arrebol risonho…
E, aurindo o tênue odor das matutinas flores,
As ilusões, o amor… Seus sonhos inebriavam,
E em trêmulos febris, seus lábios murmuravam,
Do recôndito d’ alma, os cânticos de amores.
( Heitor Octaviano – Granjas Reunidas – março de 1927)
Moça bonita, Lulu foi passear em Granjas e o conheceu. Casaram-se e Heitor mudou de profissão. Tornou-se um excelente fabricante de belos móveis. Lulu era prima de meu pai, José Brandão Filho, pelo ramo dos Ignácios da Silveira. No dizer do brilhante Antônio Augusto do Santos, o Antaugsan, você vira uma esquina em Bocaiuva e se esbarra em parentes.
Ao lado ou quase grudado à residência de Heitor e Lulu, moravam o casal Levy Nunes, dona Geralda e os filhos: Tião, Aluísio, Wandir Guta e Etelvino. “Levi Araújo Nunes: pela lição de paixão que você me deu: a fuga de casa aos 15 anos, depois do tiroteio; as batalhas fardadas nas revoluções mineiras e federais, onde seu pequeno vulto era um soldado disposto a tudo, até a escalar muros de hospital; a viagem de trem pra Bocaiuva, a primeira na vida, a tentação do meio e da dúvida; as pescarias; o tiro na testa da vaca – e tanto, pelas lições, pelas paixões, pelo ensinamento vivido, o agradecimento público do filho, herdeiro de seu sonho sem sujeito, sem predicado, sem complementos: um fulgor instantâneo, exatamente como um foguete de lágrimas chorando nos céus noturnos de Bocaiúva, nos festejos do padroeiro e nós de boca aberta” (Jornal O Debate – Tião Nunes). A bem da verdade, aqueles bons e nossos vizinhos, da mesma rua, mas opostos à nossa casa, com exceção de Heitor e de Lulu, se entrelaçavam em vínculos consanguíneos.
Hoje, um enorme prédio sufocou de uma só vez, a residência de Geralda de Sérvulo, a vendinha de seu marido e a morada de Dema e Benzim. Uma casa de material elétrico e uma movimentada agência da Caixa Econômica Federal estão no lugar. A residência de Heitor e Lulu foi também derrubada e hoje há ali uma lanchonete. Assim então, nota-se que todo o encantamento que estava represado por nós, vez por outra vem à tona, como agora e se emergindo das brumas de um passado fabuloso e não tão distante…
Volvemos para a já saudosa Marilene: Ela sempre foi uma bela moça, exuberante e cativante, que suplantou a designação de prendas domésticas. É verdade que possuía muitos e apreciados dotes. Desde nova aprendera a confeitar, além também, a arte da boa costura. E desempenhava com perfeição, outras tantas tarefas sob sua responsabilidade. Certa feita encantou-se pelo violino, instrumento musical que vira ser tocado em um filme, ou mesmo nos conhecidos “dramas”. Tais “dramas” eram apresentados nos chamados Circos Theatros, que sempre apareciam pela cidade. Comprou um violino andou tocando umas valsas e arranhando outras músicas. Depois perdeu o encanto e o deu para uma mulher que morava lá na fazenda deles, o Pé do Morro.
Bocaiuva, naquela época, oferecia poucos divertimentos às jovens de seu tempo: os bailes no Bocaiuva Club, as festinhas nas casas dos amigos e parentes, os footings aos sábados e aos domingos ao redor do jardim, na então Praça da Liberdade. Havia ainda os filmes no antigo cinema Paroquial. Os chamados parques que visitavam constantemente à cidade era também uma boa fonte de divertimentos. Eles promoviam concursos, através de votos vendidos com ágios elevados a cada semana, para se eleger a moça mais bonita da cidade. Não ficou claro se a Marilene concorreu neles. Sabe-se que esses concursos causavam o maior reboliço ou frisson na tranquila cidade. Os coitados dos namorados e admiradores gastavam uma nota danada. O objetivo era a demonstração do poder econômico, com a eleição de suas preferidas e amadas.
Também, fazendo parte das programações da juventude e do pessoal da meia idade, as longas missas em latim nos domingos de manhã, com celebrante de costas para os fiéis. Na minguada relação de diversões vinham os passeios à Estação da Central do Brasil. A festa do Rosário com os ternos de catopés, comandados por Sebastião Saforosa e o João Pretinho, quebrava a monotonia da cidade lerda, romântica e de poucas esperanças. Ah, as famosas serenatas com José de Cirilo, Ameriquinho e Brazélia Silveira. E, por fim, restava o aguardo com meses espichados à espera de outra Festa do Senhor do Bom Fim, que ocorreria no primeiro domingo de julho vindouro.
Em um belo dia, Marilene conhecera o homem, pelo qual se apaixonou e que seria o seu marido. Impecável no tratamento pessoal, de mansuetude invejável, na verdade era verdadeiro fidalgo, o Augusto Lemos. Ele morava em Montes Claros. Em certa feita fora convidado por amigos a conhecer a terra do Senhor do Bom Fim. E veio mesmo e gostou! Viu Marilene e flertou com ela. Agora, se fala que flerte é química!
Voltou outras tantas vezes, enamorou, noivou e finalmente convolou núpcias com a exuberante bocaiuvense. Assim, ficara para traz; de menina donzela, de donzela virginal à esposa, de esposa honesta à mãe exemplar.
Em Montes Claros, viveram felizes. Na casa onde ela e depois a família moraram, na Pracinha Portugal. Ali acabou sendo o ponto de acolhida de todos nós, os seus verdadeiros amigos e conterrâneos. Recebia sempre com o sorriso nos lábios, os que por lá passavam e também até se hospedavam. Criou raízes profundas e excepcionais naquela cidade, a vovó Centenária. Fez outras tantas amizades e ficou famosa pela sua invejável e alta costura.
Comprou uma nova residência e o seu excepcional acolhimento a nós, os mesmos seus amigos, continuou como dantes. Nasceram as suas duas e belas filhas, sendo que primeira, a Joyce formou-se em medicina e Cléa Márcia em Ciências Contáveis. O filho varão, Luiz Henrique é fazendeiro lá pelas bandas da cidade de Janaúba. “A mulher é uma cuidadora nata; cuida dos pais, cuida dos enfermos da família e, com muito mais razão, cuida dos filhos.”
Quando ela ficou viúva, com a morte de seu generoso marido, Augusto Lemos, ela sentiu muito, mas não se esmoreceu. Foi à luta, obedecendo aos preceitos ensinados pela antropóloga Mirian Goldenberg, autora de 15 livros dentro do tema e na qual é brilhante. Segunda ensina a escritora: ”As grandes mudanças para as futuras gerações de mulheres é reconhecer que elas próprias são seu capital maior. O valor de uma mulher está nas suas escolhas, e não só no homem. Se ela tiver um homem (como no caso de Marilene) ótimo, que bom! Se não tiver, que vão em frente e não se desanimem.”
* José Henrique (Juca) Brandão é jornalista, advogado, escritor e historiador