Ação rápida do governo e do STF paralisou o golpe e não permitiu uma GLO, que daria mais poderes aos militares – “Doutrina do Gradualismo” fez com que quadros bolsonaristas se mantivessem na estrutura da inteligência do governo Lula – Marcelo Camargo/Agência Brasil

 A compreensão plena, transparente, do golpe de Estado fracassado de 8 de janeiro de 2023 torna-se cada vez mais complexa com as novas revelações advindas do episódio dos vídeos revelados pela CNN, em 19 de abril, a fragilidade das instituições de garantia estratégica como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e a partir de agora – 3 de maio – com as ações em torno do “círculo interno” de poder, altamente militarizado, durante a presidência Bolsonaro.

Tornou-se claro que a ação do novo governo Lula da Silva foi, na área de segurança institucional, logo nos primeiros dias do mandato, lenta e, no mínimo, parcial. A confiança depositada no general Gonçalves Dias para criar um ambiente de convivência cívica, e também no ministro da Defesa José Múcio Monteiro, mostrou-se por demais otimista. Tanto o general Dias, como José Mucio – com apoio excedente do ministro do Exterior Mauro Vieira, preocupado com a “imagem” de fragilidade das instituições brasileiras no Exterior – buscaram, desde confirmada a eleição de Lula, defender um diagnóstico que apontava no pós-eleições, já em 30 de outubro de 2022, uma volta “gradual” e “sem traumas” à normalidade, sem a necessidade de um enfrentamento direto com o bolsonarismo.

Consideraram que o “perigo” bolsonarista, depois do segundo turno e, em especial, depois da apoteótica cerimônia da posse presidencial, começava a desmilinguir-se por si mesmo, como aquele “leite em pó que dissolve sem bater”. Falharam, entretanto, em identificar a clara tentativa de golpe articulado pelo então ministro da Justiça no segundo turno eleitoral como uma ameaça direta de intervenção indevida no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) visando anular os resultados da eleição presidencial. Tratava-se, claramente, de passar à continuidade real, concreta, as falsas argumentações sobre as urnas eletrônicas e bem como todo o sistema eleitoral brasileiro, explicitando o ânimo golpista do “circulo íntimo” do presidente, tratado na mídia como “Gabinete do Ódio”.

O próprio Lula – que surge como aquele que mais entendeu a extensão, e as dimensões, do oito de janeiro – reafirmou que havia um “complô”, uma inteligência geral do golpe, que se exigia punições para todos os envolvidos, denunciando uma completa “falha de segurança” no dia oito. No entanto, no GSI, na Abin e nas Forças Armadas, em especial no comando do Exército, a “Doutrina do Gradualismo” imperou até o oito de janeiro e, mesmo depois, só sendo questionada seriamente a partir de 19 de abril, quando da revelação da presença do ministro-chefe do GSI, e vários dos seus funcionários, não só presentes no Palácio do Planalto, como ainda interagindo com os depredadores invasores e que, mesmo em face das ilegalidades cometidas, não acionaram, em momento algum, o “Plano Escudo” de defesa integrada – Polícia Militar, Forças Armadas, PF e PRF – da capital federal e nem mesmo o “Plano Scooby”, de defesa do Palácio do Planalto.

Lembramos que o Batalhão Duque de Caxias possui cinco companhias de pronta ação para defesa do palácio presidencial, cada uma delas com 200 homens e duas delas de choque, que, entretanto, permaneceram acontonadas, e inativas, na garagem do anexo do palácio. Na verdade, o “Plano Scooby” é um desdobramento do próprio “Plano Escudo”, que abrange a proteção do conjunto da Praça dos Três Poderes, que não foi ativado por pedido seja do coronel Fernandes da Hora, comandante da Guarda Presidencial, seja pelo general Dutra, então chefe do Comando Militar do Planalto e, tampouco, pelo também então comandante do Exército, general Arruda.

Mas os órgãos federais cuja a função precípua é a proteção e a prevenção de crises, como o GSI, não avaliaram as dimensões e os riscos da imensa aglomeração de populares com ânimo golpista desde sexta-feira (6/1) em Brasília. Já era, no sábado (7/1) calculada a multidão em cerca de 20 mil pessoas, das quais 4 mil se dirigiram ao Palácio do Planalto. Nesta marcha, foram “escoltados” pela própria PM do DF, então sob comando de Anderson Torres, ex-Ministro da Justiça de Bolsonaro.

Houve a revelação da existência de 160 de vídeos não relatada – nos quais aparecem os funcionários do GSI em atitudes não adequadas junto aos depredadores – e que não foram apresentados ao próprio governo e à sociedade. A justificativa de que os vídeos estavam “sub judice” não parece convincente, em especial quando o próprio STF ordenou a total publicização do material.

Assim, a “falha de segurança” apontada corretamente por Lula da Silva, confirmada pela ação posterior do ministro da Justiça, pelo interventor federal Ricardo Capelli e a AGU com o ministro Jorge Messias, mostrou-se mais profunda e larga que o imaginado. Das três bases de sustentação do golpe de oito de Janeiro – (i) a multidão de depredadores financiados por empresários e transportados para Brasília, além da multidão concentrada no acampamento da Praça dos Cristais em frente ao quartel general do Exército; (ii) a ação e a inação no âmbito do governo do Distrito Federal, incluindo a PM e (iii), no entanto, foi na “terceira base”, com os órgãos federais de prevenção de crises e de aconselhamento estratégico como o GSI e a Abin, mas também os serviços de inteligência das Forças Armadas, em especial do Exército, no caso do Centro de Inteligência do Exército/CIE (criado por meio do decreto nº 60.664, de 2 de maio de 1967, como “Centro de Informações do Exército”, foi parte importante do aparato repressivo do Estado brasileiro, durante o regime militar), que se deram as “falhas de segurança” mais graves e vastas, como vemos agora nos vídeos liberados, e que acabaram por derrubar um ministro-chefe, e da “cota pessoal”, do presidente Lula da Silva.

Devemos ter claro em mente que a “falha de segurança” apontada por Lula da Silva não se deu no vazio. Há causas e estas devem ser analisadas e corrigidas. Já sabemos que houve lentidão na substituição do quadro do GSI comprometido com o bolsonarismo. No entanto, tal “lentidão” – que segue em outros âmbitos do Estado – se deveu a “falha de diagnóstico” da situação política, cultural e social do Brasil.

A “Doutrina do Gradualismo”, uma forma de apaziguamento com os setores radicais do fascismo, como no caso dos acampamentos ditos “patrióticos”, fomentou a possibilidade de golpe. Tal “falha de diagnóstico”, que envolve uma necessária análise teórica, histórica, política do momento em que o mundo passa, suas tendências formadoras de futuro, e o papel do Brasil em tais condições, não foi realizada. A imagem de um “inimigo interno”, fomentada por formas de cooperação militar com outras nações, implica numa forte entropia das instituições dedicadas à segurança institucional.

A “falha de segurança” possui sua própria história. No conjunto de grupos de orientação da transição de governo, ainda no final de 2022, com ampla consulta à sociedade civil e suas entidades, a postura dos responsáveis pela área de Defesa, Segurança Institucional e Assuntos Militares foi de completa negação. Não foram criadas as comissões de estudos que existiram em outros campos/ministérios, não foram chamados os especialistas, não se consultou os programas de pós-graduação e os institutos de pesquisa especialistas em Defesa. De forma absolutista, tanto o designado ministro-chefe do GSI quanto o futuro ministro da Defesa, municiados pela “Doutrina do Gradualismo” – mesmo frente ao ardor golpista e terrorista representado nos “acampamentos patrióticos”, incluindo a descoberta de planos terroristas para atacar o Aeroporto Internacional de Brasília – concluíram que estavam bastante bem informados para lidar com a “questão militar”.

Assim, redigiu-se um documento, no âmbito do GSI, sobre as relações militares-governo Lula, curto e de pouca densidade, dando conta de pontos, denominados de forma absurda como “cláusulas pétreas”, que deveriam ser respeitados pelo novo governo. Lá estavam os critérios de antiguidade, de avaliação e pontuação interna, de rodízio das Forças (“a vez” de se nomear alguém do Exército, Marinha ou Aeronáutica) e dentro das Forças o rodízio “de Armas no interior de cada Força” (por exemplo, “a vez” de nomear alguém da Infantaria, da Artilharia ou Fuzileiros Navais, etc.), a intocabilidade do sistema de ensino militar, o que, como bem assinala Celso Castro, inexiste frente a um único sistema nacional de Educação, a formação e atuação dos serviços de informações, ditos de inteligência – que insistem em vigiar a cidadania –, a garantia do papel da Justiça Militar, a salvaguarda de arquivos, etc.

Em suma, o documento saído do GSI e apresentado por Gonçalves Dias parecia bem mais um ultimato de embaixador das Forças Armadas ao novo governo do que um diagnóstico do setor. Em nome do “Gradualismo” nada foi alterado. Os quadros bolsonaristas não foram atingidos e as lealdades devidas aos três generais do Governo Bolsonaro (general Augusto Heleno, Ministro-Chefe do GSI; general Luis Eduardo Ramos, Ministro-Chefe da Secretária Geral da Presidência da República; e general Walter Braga Netto, ministro da Defesa e ex-companheiro de chapa pelo Partido Liberal com Jair Bolsonaro ) se mantiveram em campo, mesmo não sendo esta a corrente dominante no Alto Comando do Exército, preocupado, já então, com os profundos danos que a associação da instituição com o bolsonarismo gerava para o conjunto das Forças Armadas.

O resto é história: Brasília em escombros, a tentativa de forçar o governo a recorrer ao instituto da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), através do polêmico Artigo 142 da Constituição, e a possível paralisia do governo Lula, tutelado por um general designado pelo Comandante do Exército. Essa seria a nova indumentária do golpe no século XXI.

No entanto, a ação rápida de Lula da Silva, do Ministério da Justiça e da AGU, ao lado da construção legal fornecida pelo STF através do ministro Alexandre de Moraes, paralisou o golpe e a esperada “intervenção federal” via GLO não aconteceu. Mesmo que a resistência tenha custado momentos de rara exacerbação e enfrentamento entre o Comandante do Exército, general Júlio César de Arruda e o comandante militar do Planalto, general Gustavo Hnerique Dutra, de um lado, e o ministro da Justiça e o interventor federal Ricardo Capelli, de outro.

Ao longo da semana do golpe, a condição de comandante do Exército do general Arruda mostrar-se-ia insustentável. A agressividade contra ministros da República, a mobilização de tropas e blindados para proteger o “acampamento patriótico” em frente do quartel general do Exército e, a gota d’água, a negativa de remover o tenente-coronel Mauro Cid de um cargo de extrema relevância e de caráter estratégico para a proteção da capital federal (o Comando das Forças Especiais do país, sediado na próxima Goiânia) levariam a exoneração do general em 12 de janeiro, menos de uma semana depois do fracassado golpe e no mesmo dia que se expunha à público as dimensões do genocidio dos Yanomami.

O agravante de toda situação é que após o oito de janeiro não se deram as mudanças necessárias no setor de segurança institucional e de prevenção de crises conforme seria o esperado. Após algumas poucas exonerações, quase óbvias, voltou-se à “Doutrina do Gradualismo”, já transformada numa espécie de ideologia das relações militares-governo Lula no âmbito do GSI, da Abin e das Forças Armadas, com a substituição na Secretaria Geral do GSI, do general Carlos Penteado pelo general Ricardo José Nigri, até então responsável pelas missões de paz e inspetor-geral das PMs, ex-oficial no gabinete do general Villas Bôas.

Da mesma, forma os vídeos comprovando o “congelamento’ em ação do general Gonçalves Dias e demais funcionários militares do GSI foi considerado “classificado”, e assim vedado ao público e autoridades. Somente após o “caso CNN”, que guarda ainda fortes ligações com a periferia do bolsonarismo e com interesses muito maiores, e com o afastamento do general Gonçalves Dias e a intervenção decretada no órgão com a nomeação de Ricardo Capelli, começou-se, de fato, a um afastamento dos quadros bolsonaristas.

Por fim, opta-se pela manutenção do GSI – resta saber, se com a configuração prevista na sua criação, como um substituto da antiga “Casa Militar”, conforme Medida Provisória nº 1.911/10, de 24 de setembro de 1999, do então presidente Fernando Henrique Cardoso – ou se continuará com seu papel militarizado e dependente de indicações do comandante do Exército. A firme atuação de Ricardo Capelli aponta para uma reformulação e, no entanto, a indicação do general Marcos Antonio Amaro para o cargo – que já ocupara entre 2015 e 2016, quando em face aos escândalos da espionagem norte-americana contra o Governo Dilma – foi extinto o GSI, reforça a prática anterior de considerar a segurança institucional uma “questão militar”.

*Francisco Carlos Teixeira Da Silva é historiador, professor titular de História Moderna e Contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de “Como Não fazer um Golpe de Estado no Brasil” (Recife, Edupe, 2023).

Via Brasil de Fato

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