– A vitória de Bolsonaro cai sobre os ombros da nossa geração como a derrota mais significativa nos últimos 50 anos. Ela foi também gerada pela nossa incapacidade de defender a democracia, a ética republicana e os valores de uma utopia democrática socialista

Na transição da globalização econômica do pós-guerra para uma economia de sentido liberal-rentista, aceleraram-se os efeitos tendentes a uma maior desigualdade social nos países fora do núcleo orgânico do sistema-mundo.

A quebra do contrato socialdemocrata teve efeitos particularmente perversos nos países com experiências tardias de combate à miséria e a desigualdade, como no Brasil. Tanto nos governos do Presidente Lula como nos governos da Presidente Dilma, a esquerda socialista e socialdemocrata desenvolvimentista não estava preparada para conduzir novas alternativas de gestão política e “técnica”, que bloqueassem essas inibições de forma duradoura.

Neste contexto, por variados motivos – tanto de âmbito nacional como de âmbito internacional– o sistema das alianças partidárias no Brasil, se é verdade que ele ensejou algumas alianças importantes para a promover certas políticas de redução das desigualdades sociais e regionais, também mostrou os seus limites.

Principalmente os governos do Presidente Lula, sustentados nos preços das commodities, consagraram um ciclo de sucessos no combate à miséria e à pobreza absoluta, mesmo sem ter realizado reformas estruturais. A reforma tributária e a reforma política, que poderiam abalar – pelo menos na superfície – o sistema de poder das oligarquias regionais e do grande capital, não puderam ser implantadas por falta de apoio no Poder Legislativo e nas instituições participativas e/ou burocráticas do Estado Social.

O “bloco histórico” permaneceu o mesmo e o projeto de integração do país no sistema global, baseado na cooperação interdependente com soberania (que começara de forma expressiva já no primeiro Governo Lula) não conseguiu redefinir as relações de poder internas e não ensejou condições políticas favoráveis para dar maior efetividade aos direitos fundamentais do pacto de 1988. O resultado foi a manutenção, não só do velho sistema burguês-oligárquico de governabilidade, mas também – em termos ideológicos – a sobrevivência dos valores conservadores e antidemocráticos históricos, presentes tanto na origem escravista como na tradição autoritária do Estado brasileiro.

Este sistema sempre funcionou moldado por uma elite política conservadora e de direita que, em momentos críticos – mesmo quando afastada apenas parcialmente dos Governos – soube promover situações de ingovernabilidade para aumentar suas posições reais de força no próximo período de dominação. O atual período, por exemplo, foi reciclado conforme o assessoramento e planejamento dos think tanks americanos e nacionais, financiados por grandes empresários nacionais e globais, implicitamente acordados com uma nova direita agressiva e ultrarreacionária.

No quadro de golpismo em curso os novos e velhos sujeitos – inclusive alguns originários do modelo “lulopetista” de governabilidade – promoveram uma “cruzada” de conteúdo político manipulado, por meio de duas narrativas tradicionais largamente difundidas: (a) a luta contra a corrupção, que seria uma característica fundamental do Estado Social, do petismo e da esquerda; (b) a luta contra o “comunismo”, na forma de uma guerra contra o “marxismo cultural”, que estaria representado pela esquerda e pelo PT, na academia, na área da educação e nas instituições de luta por direitos na sociedade civil.

A impossibilidade política dos governos petistas realizarem reformas estruturais de cunho democrático e social, ainda que parciais, deixou intactos os núcleos de poder autônomo (inclusive dentro do Estado), que se articularam a partir de junho de 2013 para derrubar o governo Dilma. A campanha orquestrada pelo oligopólio da mídia, ungido à condição de corregedoria dos bons costumes políticos – articulada com a direita política de todo os matizes (inclusive apoiada em vários erros cometidos por parte dos nossos governos) permitiu que um grupo de insanos e medievalistas chegasse ao Governo Nacional e ao Palácio do Planalto.

O Governo Dilma era atravessado por ambiguidades originárias tanto do sistema político-eleitoral e partidário, como vindas das flagrantes dificuldades de lidar com a crise fiscal, para enfrentar um sistema tributário regressivo, historicamente mantido no Brasil. Às dificuldades políticas para governar nesta situação se somaram às características da própria Presidenta – como liderança política – com suas notórias dificuldades para formar um núcleo dirigente operativo e coeso no seu entorno.

A oneração de impostos sobre os mais pobres e de menor renda média, o aparato estatal coercitivo (burocratizado e atravessado por lutas corporativas) manteve –assim– plenamente as velhas estruturas de poder intactas. Elas deram vazão ao ativismo do Poder Judiciário e à politização (pela direita) do Ministério Público, que, aliás, passou – por meio da operação Lava-jato situada no Juizado de Curitiba– a controlar a pauta política do país e a personificar com seus Magistrados e Procuradores, o pólo orientador da direita e do conservadorismo privatista, abrindo uma etapa da luta política de novo tipo em âmbito nacional.

O oligopólio da mídia, os think-tanks do liberal-rentismo e os políticos conservadores (ou simplesmente reacionários) dos diversos partidos tradicionais formaram, assim, um formidável arco de alianças destinado a expurgar –por qualquer meio– os resquícios do que era uma moderada esquerda socialdemocrata presente na gestão do Estado.

Os velhos partidos do campo liberal e neoliberal foram neutralizados ou enquadrados neste movimento histórico, no qual o bolsonarismo protofascista veio ocupar um papel de destaque e tornar-se, nas eleições – com seus novos partidos liberais – uma “reserva de valor” da maioria do empresariado, cujo objetivo era não permitir a volta do PT ao Governo, no momento que suas políticas sociais e educacionais já começavam a ter um razoável efeito de concretização do Estado Social.

As insuficiências do governo da Presidente Dilma no plano da gestão do Estado e as limitações políticas da própria Presidenta, mulher honesta que jamais se curvou à corrupção – mas que não soube montar nem coordenar um “grupo dirigente” no seu entorno – agravaram a situação já tensa na economia, em função da crise mundial.

Este agravamento ocorreu, tanto pela subestimação do caráter corrosivo da crise de 2013, como pela incapacidade de o governo reconhecer que – no transcurso das manifestações daquele ano – estavam sendo finalizadas as redes de relacionamento da direita golpista e as condições de infâmia e manipulação da opinião pública, para a aceitação da “exceção”. A regressão democrática e a renovação (pela direita) da elite política conservadora e ultraliberal já estava em pleno vôo.

Todos estes fatos convergiram para um desarmamento político do PT e para a prisão arbitrária do Presidente Lula (através de processos de “exceção”) bem como para as dificuldades eleitorais que nos levaram à derrota nas eleições presidenciais. A maioria da mesma sociedade que consagrara Lula com 83% de apoio no final do seu segundo mandato passou majoritariamente a rejeitar o PT e o seu candidato, elegendo um obtuso militar, de carreira duvidosa com tendências neofascistas, oito anos depois.

Mergulhado na dogmática do sistema de poder tradicional o PT foi incapaz de avaliar a dimensão corrosiva do tema da corrupção (o que lhe incapacitou para conceber uma estratégia de mobilização social e de disputa de valores) porque não atentou para o que já estava em debate, no início do Governo Dilma: não era, novamente, quem fez mais ou faz menos para os pobres; ou quem criou mais ou menos empregos. Estas respostas já estavam claras no cotidiano do povo, que absorvera suas conquistas e transitara para outras pautas, marteladas pelo oligopólio da mídia: a pauta que subliminarmente romantizava o passado “limpo” do Brasil, como se o PT fosse o “fundador” da corrupção e idealizava o futuro, como se o combate à corrupção só fosse eficaz a partir da demonizarão de Lula e do aparelhamento das instituições de Estado pelos dogmas da direita.

Desde a crise do “mensalão” as pautas a serem respondidas no plano político tinham os seguintes sentidos, que foram gradativamente infiltrados na consciência popular: quem tinha se corrompido e corrompido o Estado?E quem seria o moralizador de uma nação que fora pura (que só existia como imaginário) e estava maculada por um Estado indiferente, agora medido em termos de valores exclusivamente morais, os mesmos que o próprio PT despertara como esperança e mito!

Política de alianças

As dificuldades para a reforma do sistema político, tentada pelo Presidente Lula no seu segundo governo – reforma esta rejeitada pela maioria da base do Governo e inclusive pela maioria petista – colocou neste fim do segundo Governo um dilema difícil de ser resolvido: tentar fazer a reforma política dispensando a base de apoio do Governo, que dava sustentação às políticas de renda e inclusão social e que levaram Lula à plena aceitação pública em todas as camadas sociais; ou: não forçar quaisquer reformas sobre o tema e manter a “base” unida, girando ainda mais ao centro fisiológico para manter a estabilidade e assim eleger Dilma como sucessora (escolhida diretamente pelo Presidente) com o mesmo sistema de alianças?

A opção pela manutenção do mesmo sistema de alianças, medida apenas pela possibilidade de reeleição do “projeto” foi correta quanto ao seu resultado imediato, mas foi um desastre nas suas pretensões estratégicas. Como se viu, em junho de 2013 o que estava sendo armado – de fora para dentro do Governo (e deste para “fora”) – produziria o golpe e a sufocante derrota eleitoral que se seguiu.

Aquelas mesmas alianças que proporcionaram capacidade de governar com estabilidade, agora se tornaram feitoras de um governo refém da sua eficácia imediata. E também se demonstraram incapazes de estimular a construção de uma sustentação – dentro e fora do parlamento – através de uma forma frentista nova, que considerasse a governabilidade não somente a partir dos humores do mercado financeiro e das opiniões dos “especialistas” da mídia, mas se sustentasse num novo bloco de poder.

A maioria do povo, que em 2013 já processava certo desencantamento com seu Governo – que a seu ver não dava respostas para a questão de fundo em pauta (a corrupção e seus tentáculos em todos os níveis de poder) – concluiu que se ela era histórica e reiterada tinha que ter sido debelada pelo PT. Era o que pensava o cidadão comum, aceitando implicitamente que ela, no mínimo, fora muito aumentada nos governos petistas.

Crise econômica

A concepção básica que passa a guiar as “reformas” que se espalharam por todo o globo (no contexto em que o governo estadunidense passara a exigir solidariedade com bancos falidos – 2009) pretendia garantir os fundos para o pagamento da rolagem das dívidas dos Estados nacionais. Passara a ser exemplar, neste particular, a situação da Grécia, um “case” que indicava, de forma impiedosa, que as reformas do liberal-rentismo em breve se tornariam universalmente imperativas. Como mostraram vários estudos dos economistas mais sérios, a crise econômica mundial “encurtara” o espaço de acumulação de capital da burguesia financeira internacional, o que exigiria – segundo a ideia neoliberal – um controle mais fino do processo de “sobreacumulação” e a transferência dos prejuízos às contas públicas em todo o mundo.

O Governo Lula apostou no caminho oposto. Desenvolveu políticas anticíclicas com maciços investimentos em obras públicas, aumentou o crédito para investimento e consumo, criou uma dinâmica virtuosa de crescimento do mercado interno de massas. A queda manipulada dos preços das commodities em geral e a manipulação dos preços do petróleo, em especial, solaparam a capacidade de manutenção dessa estratégia, diminuindo o potencial de investimento público do Estado Nacional. A opção para “segurar” esta situação econômica e fiscal, no governo Dilma, foi a saída recessiva e neoliberal, com a presença de Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, expressão máxima da nossa “rendição à objetividade” financeira global.

A nomeação de Levy mais do que um ato depressivo de um Governo cercado e sem uma estratégia econômica convincente foi uma declaração implícita de rendição ao “caminho único”. O Governo Dilma tentou aplicar o mesmo receituário liberal ortodoxo dos grupos conservadores que perderam a eleição, sem ter condições (como nos governos Lula) de permitir que “ganhassem todos”. Nestas condições, portanto, não foram recriados os momentos “gloriosos” em que os trabalhadores assalariados e os pobres em geral melhoraram as suas condições de vida – de consumo e de fruição de bens de primeira necessidade – com os “ricos” sendo parceiros dos “pobres”.

Política de segurança

O tema da segurança esteve e está profundamente integrado na disputa política no Brasil e sobre ele, durante o Governo Lula, foi desenvolvida a percepção que seria fundamental “entrar” nesta agenda. Ao encerrar um programa Segurança Pública bem-sucedido e ainda “jovem”, o Pronasci, o Governo Dilma finalizou um diálogo organizado e produtivo que vinha sendo encetado com os estados e os municípios sobre o tema.

Com os demais entes federados o Governo Federal começara a compartilhar soluções para este grave problema de Estado, através de uma nova experiência que fora consolidada após uma exaustiva negociação com o Congresso Nacional, que então dera luz verde quase unânime a ela! O Pronasci foi um programa que adquiriu prestígio internacional e que vazava as barreiras dos preconceitos ideológicos e partidários.

A gravidade da situação da segurança pública no Brasil já se mostrava como pauta universal e assim dotada de alta possibilidade de concertação institucional para enfrentá-lo. O encerramento das respostas dadas pelo Governo Lula nesta área – num contexto posterior de aposta no ajuste fiscal como saída para a crise – foi o que mais evidenciou as manifestas dificuldades políticas do Governo Dilma para uma leitura adequada da complicada conjuntura de golpe que viria.

Com a proposta do Pronasci o Governo Lula passara a oferecer forte apoio institucional e aportes financeiros para o desenvolvimento de uma política nacional de segurança pública, que combinava políticas preventivas de proteção social com repressão seletiva, focada no crime organizado; combate às milícias através de convênios da Polícia Federal com a Segurança dos Estados, nos territórios locais mais sensíveis; encaminhamento de um rigoroso programa de construção de presídios para jovens adultos (visando separá-los das velhas escolas de crime do atual sistema penal); aparelhamento das Polícias através de uma contrapartida em armas e equipamentos pela disponibilidade de pessoal à Força Nacional; implantação, conveniada com os estados de 5.000 postos se Policiamento Comunitário; instituição de um efetivo permanente da Força Nacional com equipamentos de alto nível; formação continuada e remunerada de Policiais em todos os Estados; introdução de Laboratórios para reprimir a lavagem de dinheiro; aumento da capacidade de investigação criminal da Polícia Federal.

Tudo fora feito objetivando “cortar” o vínculo do crime – em especial do crime organizado dominante em muitos territórios – com a juventude, as crianças e adolescente, as mulheres, os precários, os desempregados e semi-empregados.

A retirada do governo federal desta pauta diminuiu a eficácia do combate à criminalidade, estrangulou as UPPs no Rio de Janeiro, secou seus programas preventivos e permitiu que a responsabilidade sobre a crise da segurança pública recaísse sobre o PT e seus candidatos. Esta “retirada” da União – na condução da pauta da segurança – foi importante para a vitória de Bolsonaro, que brandiu este tema como relevante “para as pessoas pobres viverem melhor”, autorizando a Polícia – prometeu ele demagogicamente – “matar bandidos”, fazendo da violência irracional uma política de Estado.

A vitória de Bolsonaro no Brasil – mais além das manipulações midiáticas e das simplificações sinistras que foram feitas pela direita sobre os erros do PT – cai sobre os ombros da nossa geração como a derrota mais significativa nos últimos 50 anos. Ela foi também gerada pela nossa incapacidade de defender a democracia, a ética republicana e os valores de uma utopia democrática socialista.

Faltou-nos a energia, o heroísmo e a inteligência legada pelos nossos melhores exemplos – como os de Allende, Mujica e Mandela – para mudarmos no próprio curso das nossas lutas, sem mudar os princípios e a essência emancipatória dos nossos ideais. Que os próximos tempos sejam de muito esforço, inteligência e energia, para reafirmarmos a memória e os exemplos destes heróis.

*Tarso Genro foi governador do Rio Grande do Sul e ministro da Justiça no governo Lula;

Via A Terra é Redonda

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