Suas orientações e a de seus aliados empurraram os idiotas a cometer crimes em seu nome
Moraes parece focar primeiro nos bolsonaristas, em vez do chefe, para mostrar à sociedade o que o golpismo produziu
Leonardo Sakamoto UOL
A punição a Jair Bolsonaro pelo golpismo que ele organizou e incitou não é vingança, mas uma Justiça tardia. Caso o Brasil não seja capaz de processar e condenar o seu ex-presidente por atentar contra a democracia, a República Miliciana que ele instalou vai continuar crescendo. Até devorar o próprio país.
Bolsonaro é a peça-chave do núcleo político golpista da extrema direita. Como consequência de suas ações tivemos desabastecimento de comida e remédios por bloqueios em estradas, queima de caminhões, ônibus e carros, tentativa de explosão do Aeroporto de Brasília, depredação do Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF.
Basta perguntar a qualquer um dos presos na Papuda ou na Colmeia por que invadiram as sedes dos Três Poderes para, em pouco tempo, chegarmos a ele, seus discursos e postagens. Ele diz que não foi sua mão que cometeu os crimes, mas foram suas orientações e a de seus aliados que empurraram os idiotas para cometê-los em seu nome.
Não se sabe quais informações detém o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos que tratam dos atos antidemocráticos. Mas, certamente, fornecem a ele uma visão muito maior que o cenário publicamente conhecido. Ao que tudo indica, Moraes preferiu não chegar a Bolsonaro logo de cara, mas avançar sobre o bolsonarismo em círculos concêntricos de forma a mostrar à sociedade o que esse golpismo produziu, justificando uma ação mais incisiva sobre o líder.
Primeiro foram os peixes pequenos, depois pequenos financiadores, chegando a assessores políticos e oficiais da polícia militar. O preso mais famoso até agora, o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, pode ser o tiro de aviso de que mais como ele virão. No centro desse círculo, autoexilado na Flórida, está Jair.
Bolsonaro autoriza as ações golpistas chamadas por ele de “movimentos espontâneos” sob a justificativa de que “a liberdade individual seja a máxima”. Por trás da mensagem, está um dos pilares de sua filosofia: a adoção de uma sociedade miliciana, com cada um por si e Jair acima de todos.
De acordo com a Constituição, nossos direitos individuais são limitados pelos direitos de terceiros e da sociedade, em um delicado equilíbrio. Sabemos que a liberdade de expressão não é direito absoluto porque não há direitos absolutos – nem a vida é, caso contrário, não haveria a legítima defesa. E que todos nós podemos ser responsabilizados quando abusamos desses direitos, atropelando a lei.
Bolsonaro veio subverter esse processo. Desde que assumiu o poder, ele trabalhou para propagar a ideia de que o interesse dos indivíduos é sempre mais importante do que o bem-estar da coletividade. Isso não vale para todo indivíduo, apenas para o “povo escolhido” de Jair Messias, ou seja, os grupos radicais que o apoiam, que fazem parte dos 15% da população que acreditam em tudo o que ele diz.
Entre eles, estão garimpeiros, madeireiros, agropecuaristas que agem de forma ilegal, líderes religiosos ultraconservadores, empresários que desejam fazer o que quiserem sem ser importunados pela CLT, políticos e servidores públicos interessados em levar vantagem, milicianos e parte da banda podre das Forças Armadas e das polícias, entre outros.
No culto bolsonarista, a liberdade de garimpar na terra yanomami é maior do que a vida de centenas de crianças com menos de cinco anos, mortas de fome e de doenças; o “direito” de não usar máscara é mais importante que salvar vidas na pandemia; a de lucrar a qualquer custo é mais relevante do que a de garantir um mínimo de dignidade aos trabalhadores e evitar a ocorrência de escravidão, tráfico de pessoas e trabalho infantil; a de correr nas rodovias está acima da integridade física de outros motoristas e da vida de suas famílias.
Bolsonaro tentou implementar uma República em que as regras e normas que balizam a vida em sociedade fossem deixadas de lado em nome da lei do mais forte, ou melhor, do mais armado. E, ao invés do Poder Judiciário ser o responsável por julgar eventuais embates, ele assumiria essa função.
Não à toa, sequestrou ou domesticou instituições de monitoramento e controle nos últimos dois anos, atingindo áreas do Coaf, da Receita Federal, do Ibama, do ICMBio, do Incra, da Polícia Federal, da Procuradoria-Geral da República e do Congresso Nacional. Como não conseguiu o mesmo com o STF e o TSE, foi para cima.
Dissemina, dessa forma, um projeto de sociedade miliciana, onde a Justiça é trocada pelo justiçamento. Na qual a mediação dos conflitos naturais em toda a sociedade é atacada em nome da possibilidade de cada um resolver da forma como melhor entender os seus problemas sem o “incômodo” de fiscais trabalhistas e ambientais, agentes da Polícia Federal e da Polícia Civil, juízes, desembargadores e ministros, deputados e senadores. Da Constituição.
Um projeto em que as instituições atestam o que o “líder supremo” diz diretamente para o povo ou precisam ser emparedadas.
Essa sociedade miliciana invadiu as sedes dos Três Poderes, em Brasília, em uma tentativa tosca e violenta de golpe de Estado porque havia sido devidamente autorizada por Jair para tanto, porque essas instituições foram contra o que decretou o tal líder supremo. Não queriam Justiça para o que achavam correto, queriam justiçamento, reequilibrando o universo com a força de suas próprias mãos.
Punir o golpismo levando o “líder supremo” à cadeia é garantir que as instituições brasileiras tenham um futuro. A impunidade, por outro lado, levará a afirmar que os crimes cometidos por seguidores da extrema direita são realmente manifestações justas de “movimentos espontâneos”. O que porá um fim, mais cedo ou mais tarde, e espontaneamente, à democracia.