MPF apura atuação de Belgo-Mineira (hoje ArcelorMittal) e Mannesmann (hoje Vallourec); ponto de partida foi o relatório final da Comissão da Verdade em Minas – Foto: Charles Silva Duarte/O Tempo

Por Ana Karenina Berutti  – O Tempo

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou dois inquéritos civis para apurar eventual responsabilidade das companhias siderúrgicas Belgo-Mineira, que se instalou em Minas em 1921, e Mannesmann, que iniciou suas atividades no Estado em 1954, por violação dos direitos humanos ocorridos no período da ditadura militar (1964-1985) e a suposta colaboração dessas empresas com os órgãos de repressão estatais. As operações das empresas em Minas Gerais pertencem hoje à ArcelorMittal e à Vallourec, respectivamente.
Em janeiro, o MPF, em parceria com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), iniciou as investigações para tentar comprovar a relação de cumplicidade e colaboração das duas siderúrgicas de Minas com a repressão e a perseguição de seus funcionários durante a ditadura militar.

As investigações do MPF têm como base o relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), formada por juristas, professores e representantes da sociedade civil e criada para investigar repressão, mortes, torturas e desaparecimentos de militantes políticos durante a ditadura no Brasil.
O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp vem, desde 2020, coordenando a pesquisa “Projeto Responsabilidade de Empresas por Violações de Direitos durante a Ditadura”. A instituição já tem experiência no assunto, e, graças aos peritos que contratou, foi possível identificar ossadas de 40 desaparecidos políticos que teriam sido enterrados por agentes da ditadura militar na vala comum do cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona Oeste de São Paulo. Essa investigação foi concluída em abril do ano passado.

Além disso, o Caaf e o MPF conseguiram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Volkswagen. A montadora reconheceu a cumplicidade com os órgãos de repressão brasileira e destinou R$ 36,3 milhões a ex-trabalhadores e iniciativas pró-memória. “Nunca antes se havia buscado por esse tipo de reparação, e esse acordo criou precedentes para que outras empresas envolvidas com a ditadura também sejam investigadas”, disse o procurador Marlon Weichert, ressaltando que o TAC tem uma “profunda relevância histórica”. As pesquisas e investigações da Belgo e da Mannesmann estão sendo, inclusive, financiadas por parte desse recurso pago pela Volkswagen.

No último dia 6, foi realizada a primeira oitiva na sede do MPF em Belo Horizonte. Ex-funcionário da Belgo, Sálvio Humberto Penna foi ouvido. Participaram do depoimento dois advogados representando a ArcelorMittal, duas pesquisadoras contratadas pela Unifesp e o procurador da República responsável pelos casos das siderúrgicas mineiras, Ângelo Giardini. O procurador não quis conceder entrevista, alegando que as investigações ainda estão em curso.

Penna contou que o médico Jean-Paul Nicolas Seeburger, que atuava no Departamento de Medicina do Trabalho da Belgo-Mineira, em Contagem, “prestava assessoria às sessões de tortura para que os presos não morressem”. Seeburger já é falecido, mas as investigações vão apurar o envolvimento da empresa.

Empresas afirmam que vão colaborar com as investigações

Segundo a historiadora e pesquisadora da Unifesp Marina Camisasca, o MPF atendeu à recomendação do relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) de que havia a necessidade de se investigar, mais detalhadamente, as relações das siderúrgicas com o regime militar.

Marina é responsável por investigar, por meio de testemunhos e documentos históricos, tanto públicos quanto privados, o envolvimento da Belgo, hoje incorporada pela ArcelorMittal.
“A investigação está no início, mas já temos grandes indícios de que havia uma relação muito próxima entre a empresa e os órgãos de repressão”, afirma a pesquisadora.

Por meio de nota, a ArcelorMittal esclareceu que “está acompanhando o processo de investigação dos alegados eventos ocorridos na década de 1960, na antiga Belgo-Mineira, época anterior à aquisição da empresa pelo Grupo ArcelorMittal”. Além disso, em sua nota, a empresa reforçou seu “respeito incondicional aos direitos humanos e à democracia”.

Já a professora de direito constitucional e direitos humanos Tayara Lemos, da Universidade Federal de Juiz de Fora, investiga o envolvimento da Mannesmann, hoje incorporada pela Vallourec, e afirma que estão sendo pesquisados documentos no Arquivo Público Mineiro e no Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte, Contagem e Região Metropolitana (Sindimet).

“O nosso objetivo é demonstrar que de fato houve uma colaboração intensa dessas empresas com a ditadura. Esperamos que essas empresas sejam responsabilizadas pelo que fizeram às vítimas, vivas ou não, e às suas famílias”, afirmou Tayara.

Por meio de nota, a Vallourec – grupo francês que passou a atuar no Brasil em 1997, “mais de três décadas após os fatos denunciados, não possuindo mais relação com a empresa Mannesmann desde 2005” – informa que “não foi notificada pelo Ministério Público Federal e reitera que não tem conhecimento sobre o teor do inquérito e da pesquisa realizada pela Unifesp”. A empresa reforçou seu compromisso com a transparência e com o respeito às pessoas, contribuindo com os órgãos de investigação competentes sempre que demandada.

Parceria para repressão dos funcionários

Segundo o relatório final da Covemg, a Belgo-Mineira tinha ligações com os órgãos de repressão do regime militar. A parceria culminou na demissão de “74 operários acusados de serem agitadores, embora todos eles, contratados em regime da CLT, tivessem estabilidade de emprego”. Eles foram demitidos de “forma coercitiva”, logo após o golpe militar. O documento também relatou que “os trabalhadores eram forçados a assinar rescisões contratuais sob a mira de metralhadoras e sofrendo humilhações”.

O relatório da Comissão Nacional da Verdade apontou que a Mannesmann também tinha o mesmo aparato de repressão ligado ao regime militar. Casos como funcionários que “foram aprisionados” dentro da própria empresa pelo simples fato de terem sido qualificados como “líderes no movimento” foram constatados pela comissão.

No despacho de instauração dos inquéritos civis, o MPF ressalta que a aliança do empresariado com o regime autoritário tinha o objetivo de reprimir a organização dos trabalhadores. Por isso “os movimentos sindicais constituíram o alvo primordial da ditadura militar”, se manifestou o MPF em seu despacho.

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