Em meio ao self service de (des) informação de guerras híbridas, na qual pode-se escolher qual versão dos fatos compartilhar, milhões de usuários nas redes sociais são utilizados como peso narrativo pelo soft power e fortalecem instrumentos de pressão e propaganda de potências globais, relata o Le Monde Diplomatique.
por Ergon Cugler, Henrique Domingues – Portal Vermelho
Protesto em Londres contra a Guerra na Ucrânia (Foto: Unsplash/Le Monde Diplomatique
Amanhecemos quinta-feira, 24 de fevereiro, com milhões de pessoas comentando a crise no Leste Europeu nas redes sociais. No entanto, quanto mais complexo e polêmico o assunto, maior parece ser a margem para a desinformação dominar o debate.
Nas redes viu-se de tudo: fotos da Palestina sendo atribuídas ao conflito em Kiev; ministro brasileiro acreditando em corrente de WhatsApp sobre o Bolsonaro ter negociado a paz; filme russo como se fosse cena de guerra em Kiev; e até cenas de um videogame foram compartilhadas como se fossem do conflito na Ucrânia.
Acontece que o problema maior é quando as fake news saem das redes sociais e impactam as nossas vidas, seja propagando terror ou distorcendo a percepção da realidade. Com as fake news cada vez mais visíveis, como o soft power se arranja nas disputas da geopolítica global?
Fake news e soft power
Em março de 2021 vimos no Le Monde Diplomatique Brasil como a disputa entre o Tik Tok e o Instagram também é reflexo de uma tensão geopolítica e comercial entre China e EUA. Não à toa, pois a influência cultural e o soft power podem definir os moldes para pautar a percepção da realidade e conduzi-la de acordo com os interesses de potências e do mercado.
Muito além dos top trends com danças e músicas virais, no entanto, a desinformação é um fenômeno que circula em meio às disputas globais cada vez mais explicitamente. É importante reforçar, porém, que “desinformação” não se trata da mera ausência da informação, mas de uma informação existente, enganosa que tem como objetivo induzir ao erro. Isto é, para muito além do “tio do zap” desavisado, existem Engenheiros do Caos (como escreve Giuliano da Empoli) que forjam padrões para simular inclusive uma estética de memes e artes amadoras – sem contar as deep fakes de conteúdos audiovisuais, com vídeos e áudios simulados.
Na prática, quando as cenas do videogame “Arma 3” viralizam com simulações de tiroteios intensos, temos um cenário de comoção internacional que disputa o imaginário das pessoas e corrobora com pressões internacionais nos mais diversos lados interessados na disputa. Diversas foram as cenas de bombardeiros que na realidade ocorreram em outros momentos ou outros países, onde sequer foi necessário criar um conteúdo falso, mas apenas retirar de contexto um vídeo real consonante com a narrativa. Até mesmo emissoras brasileiras compartilharam trechos falsos sobre ataques, levando ao caso do comentário ao vivo do ex-ministro Ricardo Salles sobre as cenas do jogo de videogame como se fossem reais.
Há ainda o caso trágico de um tanque que atropelou um veículo civil. Em algumas plataformas, porém, é possível encontrar tanto matérias que falam que o tanque seria russo quanto matérias que o tanque seria do próprio exército ucraniano. Em meio a conflitos e ambiguidades, em qual matéria acreditar? Como não se comover e não cair no impulso de compartilhar uma informação que corrobora com a sua opinião?
E a geopolítica?
Com conflito interno se desenrolando desde 2014 na Ucrânia em meio aos estímulos de interesses estrangeiros, cabe destaque à violenta rebelião armada, conhecida por “EuroMaidan”, a qual culminou na transição de um governo democraticamente eleito e politicamente próximo a Moscou, para um governo fortemente nacionalista cuja principal diretriz seria estabelecer distância dos projetos russos e construir pontes entre Kiev, a União Europeia e, sobretudo, a Otan.
Ao avançar a institucionalização de uma política autoritária anti-Rússia, na qual o então recém formado governo ucraniano incorporou oficialmente em sua guarda nacional um destacamento paramilitar neonazista, conhecido como “Batalhão de Azov”, o “EuroMaidan” transformou-se numa guerra civil que culminou na proclamação de duas repúblicas em território ucraniano, em Donbass: A República Popular de Lugansk e a República Popular de Donetsk.
Com o aumento das tensões e a continuidade do conflito armado, Rússia, Belarus e outros países europeus atuaram como mediadores pela pacificação na região e, nesse sentido, entre 2014 e 2015 na capital belarussa, foram celebrados os “Acordos de Minsk”, que previam uma série de pontos para a manutenção da integridade territorial da Ucrânia bem como a integridade física e cultural dos residentes das Repúblicas de Lugansk e Donetsk – até que foram inviabilizados com o início da campanha militar russa em território ucraniano.
Ainda no Leste Europeu, cabe destacar a construção do gasoduto “Nord Stream 2”, uma obra de infraestrutura comercial que tem por objetivo otimizar o fornecimento de gás natural da Rússia para a Europa através do Mar Báltico e Alemanha. Antes do início da operação militar russa na Ucrânia, muitos países europeus apoiaram a iniciativa para promover maior segurança energética na região. No entanto, o projeto sofre, desde seu início, sucessivas tentativas de embargo por parte dos EUA, que alegam que o gasoduto levará não apenas gás russo à Europa, mas também aumentará a influência de Moscou sobre a região.
Além das preocupações com a aproximação entre Europa e Rússia, especula-se que Washington também veja seus próprios interesses comerciais ameaçados, uma vez que concluído, tal gasoduto russo colocaria um ponto final em suas pretensões de vender o próprio gás, a preços pouco competitivos, no mercado europeu. Como aponta Piero Leirner, não é de hoje que a Ucrânia é mapeada como um “nervo” a ser pressionado para conter o avanço da Rússia na Europa, inclusive o WikiLeaks apresentou documentos que mostram que tal sistematização dos EUA existe desde 2008.
Enquanto vidas inocentes são tragicamente perdidas, os interesses de potências globais mobilizam narrativas, fazendo das fake news em circulação instrumentos potentes do soft power para intensificar a comoção internacional e pressionar as partes em conflito.
Ainda há outros importantes elementos geopolíticos e econômicos que jogam luz à expansão da Otan ao leste, rumo à Eurásia. Tal como a investida chinesa, que através de uma política diplomática baseada na “prosperidade comum” e no “futuro compartilhado”, edifica redes de intercâmbio econômico, tecnológico e político não apenas em nível regional, mas também com importantes atores em continentes como a África e a América Latina – historicamente zonas de influência ocidental.
Em meio ao self service de (des) informação de guerras híbridas, na qual pode-se escolher qual versão dos fatos compartilhar, milhões de usuários nas redes sociais são utilizados como peso narrativo pelo soft power e fortalecem instrumentos de pressão e propaganda de potências globais. Além do mais evidente, é central refletir que muitas vezes o tom de urgência e imediatismo para posicionar-se sobre algo inclusive faz parte do jogo da desinformação para que esta seja propagada no desespero, sem tempo para checagem. Em todo caso, vale questionar quem ganha enquanto a desinformação viraliza e, em meio a operações psicológicas e guerras híbridas, quem ganha enquanto vidas inocentes são perdidas.