A decisão do STF de impedir uma eventual prisão de Lula, até o julgamento final do habeas corpus, teve o condão de pôr fim à estranha unanimidade do Judiciário na análise das acusações contra o ex-presidente.
Ainda que de modo provisório, os ministros da Suprema Corte confrontaram a teoria dominante, elaborada por Moro e seus asseclas da Lava-Jato, segundo a qual Lula não deve ser tratado com equilíbrio e bom senso, a fim de que não prevaleça uma eventual imagem de leniência do Judiciário com o presidente de maior aprovação popular na história recente do País. Assim, as provas pouco importam; os fatos, por mais óbvios, não são suficientes. O importante é o aspecto didático de uma condenação – ainda que seja uma condenação desprovida dos mais comezinhos elementos comprobatórios; ainda que se incorra na mais flagrante aberração jurídica; ainda que se cometa a mais aviltante mácula processual na aplicação da lei.
O direito não é uma ciência exata. Comporta nuances de interpretação. Resulta de visões humanísticas sobre ética e moral. Contudo, reparem a esdrúxula sequência do caso. Moro condena; os desembargadores do Tribunal Regional de Porto Alegre ratificam a condenação e, como num coro de vozes amestradas, ampliam a pena de nove para 12 anos e um mês. Até mesmo nesta gradação foram consensuais. Não houve sequer uma divergência colateral entre os magistrados – em que pese a extrema complexidade do caso. Adiante, a quinta turma do Superior Tribunal de Justiça novamente expressa consenso na rejeição de um habeas corpus preventivo. As justificativas são as mesmas, os argumentos parecem clonados da versão inicial de Moro e do Ministério Público Federal. Não houve confronto de posições nem mesmo sobre a admissibilidade ou não de recursos. Custa-nos a crer na possibilidade de não existirem modos diferentes de interpretar a lei; pesos diversos na aplicação do código penal, enfim visões conflitantes. Sem exceção, todos mostraram-se adeptos da necessidade de uma espécie de condenação sumária do ex-presidente . Quando todos aprovam, quando todos repetem exatamente o mesmo discurso, é prudente desconfiar. O Supremo quebrou esta forma monolítica, artificial e suspeita de tratar o caso. Pôs fim ao consenso de Curitiba.
As divergências entre ministros no STF, às vezes condenadas pelo senso comum, são essenciais para seriedade e o respeito às suas deliberações. É deste dissenso que nasce o equilíbrio na aplicação dos códigos. A vitalidade do sistema democrático não está efetivamente no consenso. Ao contrário, resulta dos pesos e contrapesos do conflito de posições.
Se a presidente Carmem Lúcia tentou emparedar os colegas, colocando em votação o habeas corpus e não as duas ações diretas de constitucionalidade que possibilitariam uma decisão fundada em conceitos gerais, seu objetivo foi frustrado. A perspicácia do advogado José Roberto Batochio permitiu uma solução que não estava no roteiro. O acusado não poderia ser prejudicado pela incapacidade de o Judiciário analisar o caso com a celeridade exigida. Não há como discordar desta premissa. Seria inconcebível permitir a prisão de Lula, João ou Maria com o julgamento de um habeas corpus em curso. Ainda assim, Fux, Barroso, Fachin e a própria presidente denegaram o pedido, ao arrepio do bom senso.
A despeito da seriedade de sua conduta, a ministra Carmem Lúcia peca em não permitir a imediata análise das prisões após condenação em segunda instância. Em 2016, o caso foi decidido por estreita maioria de 6 a 5, num indicativo de que a Corte estava efetivamente dividida. Ademais, houve mudança na composição do Tribunal. Ao contrário do que acha Carmem Lúcia, o que apequena o Supremo é não julgar, mas sim deixar de lado sua missão por pressão de grupos organizados e veículos de comunicação. Julgar é sempre um ato de coragem.
* Ricardo Bruno é jornalista político, apresentador do programa Jogo do Poder (Rio) e ex-secretário de comunicação do Estado do Rio