Morreu no último 4 de abril de 2020, depois de persistente doença, o Dr. Páris Peixoto Pena. O velório ocorreu na Funerária House, em Belo Horizonte e depois o seu corpo foi cremado. Ele era desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e empresário. O horário que ele cruzou a fronteira entre a vida e a eternidade foi exatamente às 22.20 horas. A princípio acreditou-se que teria sido no final da tarde, “naquela hora que os toureiros morrem ou então matam os touros”. Deixou a esposa Marlita e os seus filhos, Petrarca, Péricles, Petrônio e Patrícia. A missa do sétimo dia ocorreu na Paróquia Nossa Senhora Abadia – Matutina – às 19 horas do dia 11 de abril de 2020.
Era natural da cidade mineira de Jequitinhonha, onde nasceu em 25 de janeiro de 1933. Vinha de uma notável família, cujo pai era Antônio Ferreira Pena Júnior e a mãe Crisolina da Cunha Peixoto. Já moço, ele ingressou na Faculdade de Direito da UFMG,l Belo Horizonte, onde obteve o grau de bacharel.
Depois de formado chegou a Bocaiuva no dealbar do final de 1950. Alcançou uma cidade norte-mineira, ainda muito dividida politicamente, onde, por ocasião das eleições, principalmente, existiam muitas pugnas eleitorais, assim como insultos e escaramuças entre as facções políticas.
Posicionou-se de um lado em oposição ao então grupo dominante, chefiado pelo lendário Dr. José Maria Alkmim. E, mais tarde, ou seja, nos tempos recuados de 1960, foi eleito vereador pelo PTB, que tinha uma coligação com a UDN e o PR. Recebeu uma votação maciça, no então distrito de Conceição do Barreiro, reduto oposicionista sob o domínio político dos Dumont, cuja estrela maior era o deputado Dr. Cícero Dumont. Hoje é a bela e clínica cidade de Francisco Dumont. A sua carreira política foi de curta duração, pois logo se desiludiu com os próprios correligionários.
Ficou solteiro por algum tempo em Bocaiuva, onde advogava e dava aulas de matemática, matéria esta muito difícil e aterrorizante para alguns alunos Foi um professor eficiente e bastante rigoroso, mas gozava da estima dos seus alunos, mesmo e apesar da rigidez que impunha à classe nas suas aulas. Tanto é que depois das aulas noturnas e em noites enluaradas, ele empunhava um violão e, professor mais alunos saiam em serenatas, pelas ruas prateadas e silenciosas da cidade. “Afogada no luar, a cidade oferecia um aspecto de paz serena.” (Lima Barreto, Numa e Ninfa, pag. 137).
Quando foi se casar escolheu uma prima para ser a sua esposa, até que a morte os separasse. Ela morava em Almenara, perto da cidade de Jequitinhonha. O pai dela era irmão da mãe dele. A Marlita da Cunha Peixoto, uma moça de peregrinas virtudes, depois de casada acrescentou ao nome o Peixoto Pena. E veio morar em Bocaiuva, onde ficou por alguns anos. No seu primeiro ano então, ficou apavorada com o frio da cidade nos meses de junho e julho. Dona Marlita foi uma nossa ótima e eficiente professora no Curso de Magistério.
Em Bocaiuva o Dr. Páris advogou por 10 longos anos, antes de entrar na magistratura. Fez concurso em 1966 e foi ser Juiz de Direito em Buenópolis, comarca e cidade do Alto São Francisco Mineiro. No ano seguinte, ou seja, em 1967, foi transferido para a cidade de Corinto, antigo Curralinho Velho, também no Alto São Francisco Mineiro e ficou até 1978. Dali, foi removido a pedido para a comarca de Pará de Minas, cidade que fica na chamada Zona Metalúrgica e distante 80 quilômetros de Belo Horizonte.
Daquela comarca, no ano de 1983, Dr. Páris foi removido, a pedido, para o cargo de Juiz de Direito Substituto em Belo Horizonte. No ano de 1989 foi promovido para o cargo de Juiz do Tribunal de Alçada. Em 1997 foi elevado ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Neste mesmo ano de 1997 foi condecorado com a Medalha da Inconfidência – Insígnia.
De conformidade com a lição do ex-ministro Carlos Veloso – também a vida do doutor Paris – “foi marcada por lances que puderam revelar a grandeza de seu caráter e a sua coragem na tomada de decisões em momentos de crise, presente o conceito que dessa excelência humana proclamou John Kennedy no seu “Profiles in Courage”, de que a coragem da vida é muitas vezes, um espetáculo menos dramático do que a coragem de um momento final; mas não é menos uma mistura magnífica de triunfo e tragédia. Um homem faz o que deve, a despeito das consequências pessoais, a despeito dos obstáculos, perigos e pressões – e é esta a base de toda moralidade humana”.
Graciliano Ramos, também, nos ensina “que o homem é a soma de todos os seus momentos e o produto de todas as suas experiências”.
Em seu estupendo livro, “O tempo da memória, Bobbio faz primorosa observação: “Não é que a velhice seja ruim. O problema é que ela dura pouco.” No caso do Dr. Páris, a sua velhice foi muito encurtada por uma doença, digamos prolongada e, que cada dia se agravava.
Quando tomou posse como juiz de direito em Buenópolis, assim como Corinto, Pará de Minas e mesmo em BH, como Desembargador, nunca deixou de passar fins de semanas e parte de suas férias em Bocaiuva. Deixou raízes profundas de amizades, assim como propriedades na cidade, como Posto de Abastecimento e Hotel Pioneiro. Uma prova de que não destruiu as pontes do caminho da volta.
Na década de 1970, ele participou de um campeonato de futebol dos chamados veteranos, num campo então de terra e dentro da área da Praça de Esportes de Bocaiuva. Em um dos jogos, quem apitava era o saudoso Drincho. Uma criatura magricela, carcomida e já decrépita pela bebida, mas de apito forte! Era um bondoso e cordial alcoólatra.
Neste jogo e numa disputa acirrada dentro da área, o doutor Páris reclamou agitado do árbitro, alegando que houvera um pênalti a favor do seu time, que atuava com camisas iguais do glorioso Atlético Mineiro. E ele, o juiz, não marcara a falta máxima! Drincho interrompeu a partida, convocou o Dr. Páris à sua presença e lhe disse com autoridade: – “Gosto e respeito a sua pessoa, Dr. Páris, mas o senhor é juiz lá em Corinto. Aqui no campo mando eu! Aplausos e risos de todos nós, inclusive do próprio Dr. Páris”. O juiz de futebol Drincho morreu na semana seguinte de infarto fulminante.
Quando o Dr. Páris chegava a Bocaiuva, logo me requisitava para um bom bate-papo e colocar-se a par dos movimentos na cidade. Numa dessas ocasiões, eu já estava cursando Direito, na Faculdade da Universidade de Uberlândia. Estaria viajando no outro dia para lá e, foi bom, que sanei com ele, algumas dúvidas, referentes ao Processo Penal. Ao saber que o meu professor na disciplina era o notável Vicente Augusto de Santa Cecília Franco, ele me disse alegremente:
– O Vicente de Santa Cecília foi meu colega na faculdade de Direito em Belo Horizonte. Gostava muito dele. Um rapaz brilhante, inteligente, cortês e de família rica de Uberlândia. Um dos poucos da Faculdade que possuía carro do ano, naquela passada época, acrescentou. Dê um forte abraço a ele, finalizou!
Terminadas as provas escritas, faltavam as tortuosas provas orais. Elas eram feitas em um anfiteatro e invadiam as madrugadas friorentas de junho, bem como, as chuvosas de novembro, como daquela vez. A prova oral era de Direito Processual Penal. O professor era o mesmo Vicente Augusto de Santa Cecília Franco, que tivemos de enfrentar nas provas parciais do meio do ano. Um homem simpático e educado, e de muitas qualidades e valores, conforme dito pelo seu colega doutor Páris, porém, como professor era muito exigente sem ser ríspido. Muita gente ficava para a segunda época, naquela disciplina.
Ele, nas provas orais, reunia 5 alunos ao seu redor. Um aluno era designado por sorteio para dissertar sobre o ponto escolhido. A chamada dissertação era dividida em duas partes. Os outros quatro alunos responderiam às perguntas retiradas do contexto já exposto. Muitas delas eram transformadas em pegadinhas pelo professor. Tínhamos de ficar espertos.
Fui o sorteado para discorrer sobre a finalidade, os fundamentos e os princípios do Processo Penal no Direito Brasileiro. Antes de começar, eu tremi um pouco, suspirei fundo, até mais do que devia e fui à primeira parte do tema. Eu gostava muito do Direito Processual Penal, mas, prova oral há de se ter muito controle da emoção. Fiz o máximo para me acalmar e achei que fui de bom a melhor.
– De onde você é rapaz? Perguntou-me de chofre, o professor!
– Sou de uma cidade do Norte de Minas, Bocaiuva e trago-lhe um abraço fraterno de Dr. Páris Peixoto Pena, respondi já calmo.
– Ora veja! Obrigado por me contemplar com notícias do Páris. Foi meu colega na Faculdade de Direito da UFMG, lá na capital mineira. – Ele advoga na sua terra? – Não, respondi e completei: Advogou por muitos anos. Hoje é Juiz de Direito da Comarca de Corinto, uma cidade distante 180 quilômetros da minha terra, no sentido de Belo Horizonte.
Vicente Augusto de Santa Cecília Franco desabotoou o paletó de seu elegante terno cinza – tropical inglês brilhante, afrouxou a gravata azul e assentou-se conosco.
– Vejam rapazes, o Páris, o que me mandou um abraço, é um homem raro. Deveria trilhar uma carreira diferente da magistratura. Seria, sem nenhuma dúvida, famoso advogado em um cenário populoso. Um grande tribuno, como provou ser dentro da nossa Universidade de Minas Gerais. Alcançaria um alto pedestal como atuante e competente orador. Tornar-se-ia, tenho certeza, um expoente máximo dentro do panorama mineiro. Homem de invulgar personalidade e de cultura com grau bastante elevado
– Além de tudo, continuou, possui uma veia artística apurada, pois toca violão e canta divinamente bem as músicas de Dorival Cayme: “O mar quando quebra na praia. É bonito, é bonito”. Um declamador de mão cheia e sabia de cor quase todos os poemas de Augusto dos Anjos. “Apedreja essa mão vil que te afaga/ Escarra nessa boca que te beija!” Ainda, antes de encerrar os seus louvores ao colega de faculdade, o dito professor narrou com entusiasmo e para nós, a excursão que a turma deles fizera à Europa, logo após a formatura. Quebrara, de vez, o nobre professor, aquele clima tenso que separa os alunos do mestre.
Por fim, o veredicto:
– Nobres alunos! Já me bastou e vou acolher só a primeira parte e bem explicitada pelo José Henrique. Não há necessidade da segunda parte. A noite começa a entrar numa madrugada cansativa. Tenho certeza que vocês são todos estudiosos. Revendo as suas provas escritas, constato que a maioria foi muito bem. E, sendo assim, achando-me contemplado com a narrativa da primeira etapa oral, fiquei também satisfeito, com as poucas perguntas respondidas e formuladas aos senhores. Assim os considero aprovados! E mais, se justificou, até porque, o tema discorrido pelo colega de vocês, englobou as outras perguntas que iria lhes fazer.
– A melhor satisfação, confesso, foi ter notícias do Páris. Uma grande oportunidade de recordar tempos felizes. Afinal, um belo filme de boas lembranças passou em mim. –
Ao se despedir de nós, com certo afago, recomendou:
– Leve as minhas saudades e considerações ao Páris, caro aluno José Henrique.
Fui o último a chegar ao pátio, onde se reuniam os alunos, antes e depois das provas. Do meu grupo, Arnaldo, Jacir Gomes, Anterinho e Adolfo todos estupefatos! – Incrível, disseram! Um grande milagre ocorrera! A dureza anunciada e esperada transformou-se em total fidalguia! Um dos colegas, o Arnaldo, era o mais apressado em sair, justificando-me:
– Tenho de ir logo, pois a minha mulher é muito ciumenta. Vive dizendo que a Faculdade é abarrotada de mulheres bonitas e convidativas… Na verdade era! – Ela fica me esperando chegar. – Até porque já são quase duas horas da matina, ponderou e caiu fora!
No outro dia o encontramos alegre e aliviado. Alegou que saíra de casa e deixara a mulher ainda em sono solto. Acho que ela perdeu o sono, depois que eu cheguei lá e fui logo dormir. Conversamos só um pouco, alegou.
– Então, perguntamos! Conta para nós, como foi sua chegada em casa?
– Não lhes conto, já contando: Cheguei lá, a Marialva estava dormindo e acordou com a minha chegada.
E foi logo dizendo: – Puxa querido, estava eu sonhando com você fazendo a maldita prova oral e que dera um show. E que até o professor bateu palmas para você!
– O que aconteceu de verdade, meu bem?
– O Dr. Páris nos aprovou! – Fui econômico nas palavras.
– Espera aí, disse ela surpresa e se assentando na cama.
– O professor da disciplina, como me dissera antes é o inflexível Vicente Santa Cecília e o Dr. Páris, que não sei quem é, aprovou vocês?
– Estou baratinada, querido! Que história mal contada é esta, meu amor?
– Estou morrendo de cansaço e de sono, amorzinho!
– Amanhã lhe conto, tintim por tintim !
* José Henrique (Juca) Brandão é advogado, jornalista, historiador e colaborador do ECN