O ator Pedro Cardoso afirmou, em texto publicado em seu Intagran, que só é possível entender a mente do presidente Bolsonaro a partir de uma análise da mente de um torturador. Para o torturador a morte da vítima representa seu fracasso, porque o seu objetivo é mantê-la viva e sofrendo o máximo de desconforto possível.
O jornalista Bruno Ribeiro vê Bolsonaro como o protótipo do ideal fascista. Mas qual o real caminho para entender a
postura contraditória de um presidente que fala sem pensar no que diz e, com frequência, volta atrás poucas horas depois de dizer? Um presidente que manipula seus apoiadores e faz questão de aterrorizar todos que não concordam com ele, insinuando que pode tomar medidas drásticas contra a liberdade, a cidadania, e até a vida, de que quem não o apoia?
Primeiro é preciso voltar no tempo para se conhecer as bases em que foi forjada a personalidade política que hoje ocupa o maior cargo do país. Em 1986, Jair Messias Bolsonaro era um capitão do serviço ativo do Exército Brasileiro e escreveu um artigo intitulado “O salário está baixo”, publicado na Seção “Ponto de Vista” da Revista Veja, edição de
01/09/1986; o artigo falava do achatamento salarial dos militares e de demissões sucessivas de cadetes da Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN) em virtude dos baixos salários. A edição de Veja de 25/10/1987 publicou uma matéria da qual constava uma entrevista de Bolsonaro e outros capitães do Exército em que teriam falado do “Plano Beco sem saída”, que consistiria na explosão de bombas no banheiro da Escola Superior de Aperfeiçoamento de
Oficiais (ESAO), na AMAN e em outros quartéis do Exército. As explosões seriam preparadas cuidadosamente para não provocar vítimas: o objetivo seria apenas protestar contra os salários e mostrar ao Presidente da República, José Sarney, que o Ministro do Exército, general Leônidas Pires, não tinha o controle da tropa.
O famigerado “Plano Beco sem saída” não foi levado a efeito. O então capitão Bolsonaro negou a existência do plano e que tenha fornecido tais informações à Veja e o Ministério do Exército emitiu nota questionando a veracidade da reportagem produzida pela repórter Cássia Maria. Na edição de 04/11/1987, a revista se defendeu publicando uma matéria, na qual insistia que o capitão Bolsonaro havia de fato fornecido informações sobre o plano e que fizera, inclusive, desenhos de próprio punho de alguns croquis do plano, um deles de uma adutora do Rio de Janeiro, que não fazia parte do plano e fora feito apenas para mostrar que se quisessem de fato perpetrar um ato terrorista ali seria um ponto vulnerável. A publicação de tais desenhos levaram a um processo demissional (Conselho de Justificação) contra o capitão. O Conselho concluiu pela demissão compulsória do oficial, pela perda da patente,
porém, o Superior Tribunal Militar (STM) o inocentou e ele permaneceu no posto. Sabendo que sua carreira militar fora abortada, restava uma única saída: ingressar na política. Em 1988 candidatou-se a vereador pelo município do Rio de Janeiro, eleito, foi transferido para a Reserva Remunerada do Exército Brasileiro, conforme veremos adiante.
É preciso lembrar que historicamente as Forças Armadas brasileiras, desde a proclamação da República, sempre se dividiram entre “moderados” e “linha-dura”, quanto à visão política. Os primeiros são defensores de ações menos rígidas na condução de um processo político, associando repressão com diplomacia e valorizando a comunicação como instrumento de controle social; os segundos são ultraconservadores e renegam a possibilidade de mudanças
institucional, são adeptos de ações diretas, impositivas e interventivas no sentido de ditar e moldar condutas – alguns membros desse segundo grupo defendem o uso de métodos radicais no interrogatório de suspeitos, definidos como tortura física e/ou psicológica –; os dois grupos, obviamente, já foram ou ainda são identificados por outros adjetivos.
Os linha-dura foram os criadores do Projeto Orvil, um documento contendo mais de mil páginas, produzido após o fim do Regime Militar, contendo a interpretação dos seus produtores sobre o que foi o regime no
país. Os dois grupos têm uma nítida vocação para ações ditatoriais, diferenciando-se apenas quanto aos métodos e estratégias para se manterem no poder. Essas duas correntes sempre estiveram presentes especialmente no Exército, e se tornaram mais visíveis durante o Regime Militar. Na Aeronáutica e na Marinha essa divisão parece ser menos evidente; porém, entre os moderados dessas duas forças já houve muitas ações de militares que se identificavam com
uma visão esquerdista de mundo: questionamento das mordomias e de tratamento desigual internamente (a História registra motins e revoltas relativas a isso), manifestação explícita contra defasagem salarial e condições de trabalho, defesa de mudanças nas relações interpessoais internas, etc. A essência dessa mentalidade militar ainda guarda resquícios do pensamento colonial trazido pelos portugueses, além de influência do pensamento nazifascista, especialmente quanto ao fato de que as relações hierárquicas transcendem os limites funcionais e se imiscuem nas relações interpessoais, sob os desígnios de um autoritarismo explícito.
Bolsonaro é do grupo dos militares moderados, assim como o seu vice-presidente, general Hamilton Mourão. Em virtude dos fatos que o envolveram na década de 1980, um Dossiê publicado pelo Jornal O Globo, em 10/06/2018, mostra que ele foi espionado pelo então Serviço Nacional de Informações (SNI) de 1986 a 1989 e que foi taxado de detentor de ideias de esquerda, conforme Prontuário nº 097160-08/SNI, acervo do Arquivo Nacional. Ele contrariou os militares linha-dura, ao tornar explícitas questões internas da instituição sobre salários e demissões coletivas, questionar ações do Ministro do Exército e, ainda, por reverter, no STM, a decisão dos coronéis do Conselho de Justificação contra si. Ele mexeu com um vespeiro!
Sua carreira estava encerrada: se permanecesse estaria às voltas com dificuldades para ser promovido, além de possíveis incômodas transferências. Entrar para a política foi a saída que encontrou, porque um militar, após ser diplomado em cargo eletivo, deve ser, por lei, transferido para a Reserva Remunerada; ele foi eleito vereador, pelo PDC, pelo município do Rio de Janeiro, em 1988, e transferido para a Reserva em 1989 (Diário Oficial da União de
08/02/1989). Entretanto, ele obviamente sabia que o serviço de inteligência acompanhava suas ações e, para sobrevivência na política, viu-se obrigado a se redimir, a tentar agradar os linha-dura com discursos cada vez mais reacionários: defesa do nacionalismo exacerbado, Estado forte (como presidente ele mudaria sua posição em relação ao Estado, ao adotar ideias ultraliberais a partir do pensamento de Olavo de Carvalho e de capitalistas seus apoiadores) e, sobretudo, a defesa explícita de torturadores, da tortura em si e do extermínio de opositores como método político.
Manteve esses discursos como vereador e depois como deputado que se elegeu antes de concluir o mandato de vereador e se reelegeu sucessivamente até chegar à Presidência da República. “Não funciona. Através do voto não vai mudar nada. Só vai mudar com uma guerra civil, matando uns 30 mil, inclusive o FHC. Eu sou a favor da tortura…”. (Programa Câmera Aberta, Rede Bandeirantes, 23/05/1999). “Antes de construir será necessário destruir muita coisa nesse país” (diáriodocentrodomundo.com.br).
Ele chegou à presidência através do discurso populista, falando o que a massa gostaria de ouvir, e do antipetismo que a Rede Globo ajudou a criar, na esperança de eleger Meirelles ou Alkimim. A Globo deu um tiro no pé: ao estimular o antipetismo, ajudou a eleger, indiretamente, Bolsonaro. O PT usou as estratégias erradas ao acreditar que o antipetismo seria tragado pelo tempo – ficou assistindo de camarote a direita associar diuturnamente ideologia de esquerda com corrupção e mentira, quando acordou era tarde –, não promoveu nenhuma ação organizada para enfrentar a campanha deflagrada contra o partido e contra a esquerda em geral, deixou que um ou outro militante reagisse isolada e desorganizadamente aos ataques; também errou na condução da campanha presidencial, tema que carece, até hoje, de uma autocrítica.
Ora, claro está que nem todos os militares das Forças Armadas apoiam Bolsonaro. Ele não tem o apoio dos poucos militares que estão mais à esquerda e tem a repulsa dos linha-dura, que é um número considerável. Dentre esses últimos há muitos que ambicionam assumir a presidência pela via ditatorial. Bolsonaro conta com o apoio quase total das Polícias Militares, o que cria certo equilíbrio de forças, mas não seria suficiente para mantê-lo no poder no caso de uma intervenção militar. Sobre as faixas pedindo intervenção militar, a volta do AI5, fechamento do Congresso Nacional e do STF, exibidas nas ruas, no último dia 19 de abril, indicam que os bolsonaristas ainda não se deram conta de que os principais interessados nessas ações são exatamente os militares que têm a pretensão de ocupar o cargo de presidente e que as instituições que pretendem fechar são justamente as que garantem a permanência de Bolsonaro no poder.
A faixa “Intervenção Militar com Bolsonaro no poder” é de uma ingenuidade sem limites: intervenção militar hoje significa a derrubada (senão a morte) de Bolsonaro e de Mourão.
A eventual implantação de uma ditadura, hoje, com o fechamento das instituições que garantem a democracia, redundaria, como foi dito, na derrubada de Bolsonaro pelos militares linha-dura, o que traria duas implicações imediatas, uma boa e outra ruim: a boa é a saída de um governo incoerente, vacilante nas decisões, aterrorizante, subserviente aos EUA, comprometido com os interesses dos grandes proprietários e da elite em geral; a ruim é o fato
de que entraríamos numa ditadura militar em nível daquela dos tempos de Costa e Silva e Médici que, certamente, restringiria a liberdade individual e social, censuraria a imprensa e as redes sociais, perseguiria todo e qualquer cidadão que se manifestasse contrário ao governo, enfim, implantaria um estado tirânico que, possivelmente, nos levaria a uma guerra civil e ao caos.
É como diz o velho ditado: “Se fica o bicho pega, se correr o bicho come!”. Um eventual impeachment para a assunção do vice general Mourão, poderia ser a opção menos pior – ou aguardar 2022 e contar com a possibilidade de que ele, com suas trapalhadas, tenha se desgastado o suficiente para não se reeleger.
* João Figueiredo é jornalista, sociólogo e militar reformado