Uma derrota com D maiúsculo – que vai se repetir se não tentarmos aprender com ela
É difícil extrair alguma alegria do resultado das eleições de ontem.
Por Luis Felipe Miguel*, em perfil de rede social
Sim, em Fortaleza, em Niterói, em João Pessoa e em Belém, candidatos bolsonaristas bizarros foram derrotados – o fato de que tenham chegado ao segundo turno já seria preocupante.
Mas uma criatura como Abilio Brunini, representante da ala mais troglodita da extrema-direita, elegeu-se em Cuiabá, contra um petista que abraçava tanto o agronegócio quanto o discurso contrário à “ideologia de gênero”.
Em Porto Alegre, como (infelizmente) esperado, a população reelegeu Sebastião Melo por larga margem, premiando uma gestão que teve, como principal marca, a terrível enchente do início do ano – quando a incompetência, a negligência criminosa e a corrupção da prefeitura foram escancaradas.
Porto Alegre, não custa lembrar, foi o berço do orçamento participativo e do “modo petista de governar”, sede do Fórum Social Mundial, uma experiência estudada no mundo todo.
O que deu errado? Por que esse esforço aparente de educação política popular parece não ter deixado rastros?
Mas é claro que a eleição mais importante foi a de São Paulo, a maior cidade do país.
No discurso em que admitiu a derrota diante de seus apoiadores, Guilherme Boulos disse que sua campanha recuperou “a dignidade da esquerda brasileira”. Não é possível concordar com este veredito.
Pelo contrário, Boulos não foi apenas derrotado nas urnas. Por conta da campanha errática e sem fibra, sofreu um desgaste importante em sua imagem como liderança política e desperdiçou uma oportunidade de ouro para tentar reapresentar um projeto de esquerda no Brasil.
O desempenho do candidato do PSOL foi praticamente igual ao de 2020: na proporção de votos válidos no segundo turno, a diferença é vista apenas na segunda casa depois da vírgula.
Mas ele estava disputando com o adversário muito mais fraco, Ricardo Nunes, desprovido de qualquer charme, sem o peso político ou o sobrenome de Bruno Covas, pilotando uma administração universalmente considerada medíocre e com uma coleção de telhados de vidro que iam do roubo de dinheiro de merendas à violência contra a mulher.
Talvez ainda mais importante, Boulos fez uma campanha muito rica, com orçamento superior aos 80 milhões de reais. Com todo esse dinheiro, não foi capaz nem de vencer a eleição, nem de promover uma ampliação do nível do debate político que permitisse incrementar a consciência crítica do eleitorado.
Seu discurso foi marcado pela capitulação permanente diante do senso comum mais rebaixado, já que nunca havia um momento de educação política.
Boulos foi derrotado, segundo as análises correntes, por sua taxa de rejeição. Há verdade nesse veredito.
Seu caminho foi tentar modular a imagem, em vez de questionar os preconceitos que geravam a rejeição.
A diferença da candidatura de Boulos não era um discurso de esquerda, mas o lulismo – isto é, um programa de mudanças tímidas (mas nem por isso desimportantes), com recusa a qualquer enfrentamento, esperançoso de seduzir as classes dominantes para um projeto civilizatório.
Faz tempo, aliás, que a esquerda brasileira está pronta a recuar em tudo, com medo de enfrentamento.
Nada de discurso anticapitalista, mal se fala de imperialismo, luta de classes sumiu, o “empreendedorismo” e a “inovação” tomaram conta do vocabulário, direito ao aborto é tabu, assim por diante.
A única exceção é a lacração identitária, que na campanha de Boulos surgiu no triste episódio do “hine nacionale”. Tanto esforço para evitar discussões urgentes e necessárias – para depois abraçar o desgaste de uma polêmica inútil.
Lacração, convém sempre lembrar, não tem nada a ver com educação política. É uma ferramenta a serviço exclusivamente do narcisismo inconsequente de uns poucos.
Depois de um primeiro turno dominado por fofurices, em que parecia falar mais de Taylor Swift do que de especulação imobiliária e em que passou de favorito a azarão, conquistando a vaga no segundo turno no olho mecânico, Boulos teve que mudar de postura.
Mas nunca apostou na politização. Tentou se aproximar do eleitor de Marçal mimetizando os acenos ao “empreendedorismo”, reduziu o apagão à gestão da prefeitura (poda de árvores) deixando em segundo plano a questão da privatização, assim por diante.
Ao participar da “sabatina” de Marçal, sem sequer confrontá-lo, aceitou, como disse o ex-deputado federal Milton Temer, posar de “figurante em lançamento de campanha para presidente em 2026”.
Já faz bastante tempo que é evidente que o projeto de Boulos é repetir a trajetória de Lula: do movimento social para a política eleitoral, das margens para o mainstream, da derrota para a vitória.
Não está dando certo. Talvez porque falte o carisma e a autenticidade do original. Certamente porque as circunstâncias mudaram.
A fórmula lulista está desgastada e precisamos não é de quem a imite, mas de quem ajude a encontrar caminhos para superá-la.
O discurso de ontem mostra que a ficha ainda não caiu para Boulos. Mas, se não mudar de rumo, ele não vai ser Lula – vai ser Freixo.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê (@demode.unb). Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2]