Experiências mostram que essa tática produziu instabilidade, mas não foi bem-sucedida em longo prazo
Os ataques de Jair Bolsonaro (sem partido) ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) repetem uma tática usada em vários países pela direita no século 21. Segundo pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato, o objetivo não seria mudar o sistema eleitoral em si, mas conturbar o processo, deslegitimar adversários e se apresentar como alternativa à “ordem global”.
Por Daniel Giovanaz – Brasil de Fato
Nos últimos oito anos, líderes conservadores difundiram essa mesma narrativa sem provas em pelo menos sete países, com diferentes consequências. Em quase todos, criou-se um ambiente de instabilidade, mas logo o discurso se enfraqueceu e os políticos que atacaram o sistema eleitoral perderam espaço.
“Essa onda conservadora mais radical de extrema direita parece já ter atingido seu ápice, a ponto de os regimes democráticos já terem desenvolvido alguns remédios [contra essa narrativa]”, avalia o cientista político Vitor Marchetti.
“A gente tem visto alguns sinais de que, do ponto de vista eleitoral, [essas correntes] ainda estão fortes e vivas. Mas, começa a se apontar no horizonte um movimento de arrefecimento.”
Relembre alguns casos:
Peru, 2021
Filha do ditador Alberto Fujimori (1990-2000), que governou o Peru entre 1990 e 2000, Keiko Fujimori não aceitou a derrota no 2º turno das eleições presidenciais, confirmada em julho deste ano.
Já no 1º turno, a candidata havia listado supostas irregularidades ou estranhezas no processo de votação – sempre de maneira vaga e pouco precisa.
Durante o 2º turno, ela pediu que os eleitores relatassem e enviassem aos organizadores de sua campanha quaisquer indícios de manipulação eleitoral ou fatos atípicos ocorridos durante a votação.
Faltando 0,02% da apuração, assim que o candidato de esquerda Pedro Castillo passou à frente, Fujimori pediu ao Jurado Nacional Eleitoral a revisão de 1,2 mil atas de votação e anulação de cerca de 802 mesas eleitorais, abrangendo 500 mil votos. A vantagem de Castillo, naquele momento, era de 71 mil votos.
O diretor do Jurado Nacional Eleitoral (JNE), Jorge Luis Salas, afirmou imediatamente à imprensa: “A candidata faz um desfavor à democracia ao falar de fraudes que não existem, não existiram e nem vão existir.”
Diante das tensões, o Ministério da Defesa do Peru emitiu um comunicado reiterando o compromisso das Forças Armadas com a Constituição, democracia e a vontade cidadã expressa nas urnas.
Os pedidos de revisão atrasaram em mais de um mês o reconhecimento oficial da vitória de Castillo.
Presidente eleito do Peru, Pedro Castillo promete levar adiante proposta de reforma constitucional / Agência Andina
Assim como Bolsonaro, a filha de Alberto Fujimori convocou várias vezes seus apoiadores às ruas para engrossar o coro contra o sistema eleitoral.
No país andino, como mostrou a cobertura do Brasil de Fato, a estratégia fracassou porque o adversário conseguiu reunir ainda mais seguidores na capital Lima. Os eleitores de Castillo permaneceram mais de uma semana em vigília “em defesa do voto e da democracia.”
Depois que o resultado das urnas foi respaldado por observadores internacionais e pela Organização dos Estados Americanos (OEA), Fujimori perdeu espaço na mídia local. Ao final do processo, ela deu um pronunciamento contraditório: disse que aceitaria a vitória “ilegítima” de seu adversário.
Keiko Fujimori já esteve presa em duas ocasiões, como parte de um processo que a acusa de lavagem de dinheiro em contratos com a construtora Odebrecht. Em 31 de agosto, será realizada uma nova audiência com novas acusações. Segundo o procurador do caso, Rafael Vela, o partido de Fujimori, Força Popular, atuou como uma “organização criminosa” na captação de recursos para a campanha.
Alemanha, 2021
Se no Peru a narrativa de fraude foi sepultada, na Alemanha esse discurso vem ganhando adeptos. Sem apresentar provas, o partido extremista AfD questionou o resultado das eleições no estado da Alta Saxônia em junho.
Naquele pleito, o AfD foi derrotado pelo CDU, partido da atual chanceler Angela Merkel.
Segundo o estudo Campanhas da desinformação contra a eleição: resultados da Alta Saxônia, do Instituto para Diálogos Estratégicos, da Inglaterra, militantes da direita radical inundaram as redes sociais de imagens editadas ou fora de contexto para sustentar a ideia de fraude.
Jair Bolsonaro com a deputada de extrema direita Beatrix von Storch, do AfD, em julho / Reprodução/Instagram Beatrix von Storch
“Na maioria das postagens, nenhuma suspeita específica era mencionada”, afirma o relatório britânico. A narrativa se baseava, simplesmente, na discrepância entre o resultado das eleições e as pesquisas prévias feitas pelo partido extremista.
Nesse caso, o órgão eleitoral sequer autorizou recontagem dos votos, por considerar as denúncias frágeis e inconsistentes.
Por outro lado, analistas locais afirmam que o clima de revolta e instabilidade que se criou em junho é um sinal de alerta para as eleições nacionais, que ocorrem em 26 de setembro.
Uma das figuras mais conhecidas do partido AfD, criado há oito anos, é a deputada Beatrix von Storch, que visitou Bolsonaro no mês passado.
Israel, 2021
O ex-premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, é o único da lista que não atacou o sistema eleitoral em si, mas a formação da coalizão que o derrotou.
“Estamos testemunhando a maior fraude eleitoral da história do país e, na minha opinião, na história de qualquer democracia”, disse o aliado de Bolsonaro em junho.
Netanyahu concentrou suas alegações na promessa descumprida pelo principal adversário, o nacionalista Naftali Bennett, de não se aliar a partidos árabes, de esquerda e de centro.
Investigado por corrupção, Netanyahu estava no cargo desde 2009 e se recusou a cumprimentar seu sucessor no dia da posse.
Os serviços de segurança locais alertaram para o risco de violência política, e membros do partido Yamina, que integra a coalizão vencedora, precisaram de escolta policial após receberem ameaças de morte.
Como a narrativa de fraude eleitoral não decolou, o partido dele, Likud, colocou panos quentes na história. Pelas redes sociais, a organização informou que trabalharia para “uma transferência pacífica de poder em Israel” e que as palavras de Netanyahu haviam sido distorcidas.
Sem chances de reverter a derrota, o aliado de Bolsonaro ordenou a destruição de documentos que se encontravam nos cofres de seu gabinete e voltou a se concentrar nos julgamentos em que é réu por corrupção.
Estados Unidos, 2020
Incitados pelo então presidente Donald Trump, militantes de extrema direita e supremacistas brancos invadiram o Capitólio, sede do Congresso dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, durante a sessão que confirmaria a vitória do democrata Joe Biden.
Cinco pessoas morreram naquela tarde, que marcou o ápice da campanha de ódio e “fake news” do candidato republicano contra seu oponente e contra o sistema eleitoral.
Invasão do Capitólio, em janeiro, foi marcada pela presença de supremacistas brancos / AFP
Meses antes da votação, Trump já criticava a modalidade de voto por correio, em que supostamente seu adversário levaria vantagem. Após o início da apuração, questionou a contagem em quatro estados onde obteve números abaixo do esperado.
Em discurso na Casa Branca, o republicano chegou a falar em “votos legais” e “ilegais”. “Se contarmos os votos legais, eu ganhei”, declarou.
Após tentar judicializar os casos, o último recurso foi usar as redes sociais. Em uma das postagens, Trump escreveu em caixa alta: “PAREM A CONTAGEM”.
No fim das contas, os processos de auditoria e revisão não encontraram nada que justificasse a tese de fraude, e Trump foi bloqueado pelo Twitter.
A posse de Biden foi conturbada, mas em poucos dias a situação se normalizou e episódios como a invasão do Capitólio não se repetiram – mesmo em um país com acesso facilitado a armas.
“Com esse evento, se encerra uma era da política Trump, mas não necessariamente o fenômeno do trumpismo, que é basicamente uma união entre populismo e supremacia branca. Isso não vai se desfazer de uma hora para a outra”, alertou Flavio Thales Ribeiro Francisco, professor do Programa de Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Bolívia, 2019
De todos os países listados, a Bolívia é a que teve um período mais longo de instabilidade.
A reeleição do então presidente Evo Morales por margem mínima, em 2019, não foi aceita por setores da direita e da extrema direita, que provocaram motins em várias regiões do país.
As denúncias infundadas de fraude, que se espalharam primeiro pelas redes sociais, foram respaldadas por relatório da OEA.
As agressões a membros do Movimento ao Socialismo (MAS) e as ameaças de morte levaram Morales ao exílio. Quem ficou na Bolívia sentiu a violência na pele.
Os episódios mais graves de violência política foram o linchamento público da prefeita Patricia Arce, na província de Vinto, em Cochabamba, e os massacres de Senkata e Sacaba, que deixaram 36 mortos.
Na província de Santa Cruz, apoiadores de Morales foram perseguidos e presos sem provas.
O golpe durou cerca de um ano. Nesse período, integrantes do MAS criaram o Grupo de Apoio Estratégico (GAE), para difundir informações verídicas, contrapor o discurso de fraude eleitoral e restaurar a democracia.
“A América Latina está em disputa. Porque também em outros países há ingerência por parte de estrangeiros, que vêm em busca dos nossos recursos naturais. Esse é o modus operandi da direita”, afirma um dos membros do GAE, Rafael Gámez.
Segundo Gámez, a “guerra midiática” contra Morales começou ainda em 2016, quando foi convocado um plebiscito sobre a possibilidade de uma nova reeleição.
“Precisavam de uma forma de frear sua liderança, e usaram todos os meios para dizer que ele era um ditador”, lembra.
“Em 2019, em pleno desenvolvimento das eleições, eles já tinham um plano estratégico e o aplicaram midiaticamente. Em diferentes departamentos, queimaram os tribunais eleitorais, e logo saíram diferentes atores dizendo que havia fraude”, acrescenta o militante do MAS. “O país convulsionou, em cumplicidade com as Forças Armadas.”
Ao final, a hipótese de fraude foi derrubada e demonstrou-se que a OEA manipulou dados em seu relatório. Carlos Mesa, representante da direita tradicional que aderiu à narrativa golpista, desistiu de se candidatar à Presidência na eleição seguinte.
Em 2020, Jeanine Áñez, que assumiu o governo boliviano após a saída de Morales, foi destituída e presa preventivamente.
Patricia Arce, que teve o cabelo cortado, foi pintada de vermelho e obrigada a andar descalça por vários quarteirões em Vinto, elegeu-se senadora. Por fim, Morales retornou do exílio e seu companheiro de partido, Luis Arce, venceu em 1º turno a disputa pela Presidência do país.
“Trabalhamos muito para contrapor as mentiras e difundir o que haviam sido os governos do MAS e o que poderia ser um governo de Arce. E essa linha deu resultado”, lembra Rafael Gámez, do GAE.
No último dia 4, Andrés Zabaleta, juiz anticorrupção de La Paz, estendeu a prisão de Áñez por mais seis meses ao alegar “risco de fuga” e de “contaminação de provas.”
Ela é investigada por violação de deveres e por tomar decisões contrárias à Constituição do país, como a autorização de obtenção de crédito no Fundo Monetário Internacional (FMI) e a aprovação de decreto contra a liberdade de expressão.
Brasil, 2014
A reeleição de Dilma Rousseff (PT), em 2014, não foi aceita imediatamente por seu oponente no 2º turno, Aécio Neves (PSDB).
“Os detentores do poder usaram despudoradamente o aparato estatal para se perpetuarem no comando”, disse, no primeiro discurso após a derrota.
O PSDB pediu autorização ao TSE para promover uma auditoria sobre o resultado da eleição de 2014. Um ano depois, concluiu que não houve fraude no processo.
Aécio não se candidatou mais à Presidência e foi o único deputado federal que se absteve na votação sobre o voto impresso, na última semana.
Em meio às polêmicas levantadas por Bolsonaro, o tucano veio à tona para reconhecer, pela primeira vez de forma contundente, a lisura do pleito de sete anos atrás: “A eleição foi limpa. Perdemos porque faltou voto.”
Venezuela, desde 2013
As duas eleições de Nicolás Maduro à Presidência da Venezuela foram questionadas por setores da direita radical.
Em 2013, o opositor derrotado Henrique Capriles incitou a desobediência civil contra os resultados, que ele considerava fraudulentos. Em 2018, novas denúncias de fraude fizeram com que o parlamentar Juan Guaidó se “autodeclarasse” presidente para convocar novas eleições sem o candidato chavista.
Nos dois casos, houve pedidos de recontagem de votos, e os órgãos eleitorais não encontraram irregularidades.
Mesmo assim, Guaidó se tornou um símbolo internacional de repúdio ao governo Maduro, reiterando a narrativa de fraude também nas eleições legislativas do país – sem provas.
Como na maioria dos países onde a direita apostou nessa estratégia, o discurso perdeu gradativamente a força. Segundo pesquisa do instituto Datanálisis publicada em março deste ano, apenas 11,4% afirmaram que votariam em Guaidó para presidente. Dois anos antes, ele tinha 77% de apoio.
Por outro lado, a narrativa de fraude pode ter impactado o atual governo, em alguma medida. Segundo o levantamento mais recente do Dataanálisis, Maduro teria 12% das intenções de voto, tecnicamente empatado com Guaidó, enquanto 45,8% disseram que “pretendem votar em um candidato independente.”
O risco Bolsonaro
O militante boliviano Rafael Gámez usa o exemplo de seu país para analisar a ameaça imposta por Bolsonaro.
“O que os brasileiros precisam fazer é usar os meios de comunicação e as redes sociais, criando plataformas de defesa para difundir a verdade: o que foram os governos Lula, em comparação com os atos negativos de Bolsonaro. Mostrar que as pessoas se equivocaram [ao votar por Bolsonaro], e que Lula pode dar tranquilidade ao país e restaurar a economia”, diz.
Para o cientista político Vitor Marchetti, o Brasil sob governo Bolsonaro tem especificidades que tornam o cenário uma incógnita.
“O resultado de cada experiência, no mundo, depende dos ambientes institucionais de cada país.”
“No caso brasileiro, as instituições que coordenam o sistema eleitoral são bastante sólidas. O TSE e todo nosso sistema de justiça são mais fortes que as instituições dos EUA, por exemplo, porque lá não existe um sistema centralizado e autonomia dos estados para organizar as eleições produz ruídos.”
A neutralização da narrativa de fraude no Brasil dependerá, na visão dele, da capacidade de reação das instituições, muitas delas chefiadas hoje por pessoas indicadas por Bolsonaro e que se mostram leais a seu projeto.
Doutora em Ciências Sociais com pós-doutorado em Comunicação Política, Rosemary Segurado chama atenção para a relação de Bolsonaro com as Forças Armadas e as polícias militares.
“Da maneira como ele vem insuflando seus apoiadores, e sabemos que ele tem uma base importante nas PMs, eu entendo que aqui possamos ter algo até mais grave que o episódio do Capitólio”.
“Não acredito que será possível construir algo de longa duração, mas eles vão buscar criar esse espetáculo, o que não deixa de ser perigoso”, finaliza.
Edição: Leandro Melito