Engana-se quem acredita que o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, seja somente um político oportunista, desinformado e que, com frequência, destila preconceito.

Ele é isto, mas não apenas.

Fotos: Reprodução/TV Globo e redes sociais

Por Ângela Carrato*

Empresário dos mais ricos, sua eleição para o governo de Minas, em 2018, foi um golpe de sorte, movido a toneladas de fake news.

No último minuto do último debate entre os candidatos no primeiro turno ele, que integrava o partido Novo, anunciou apoio a Jair Bolsonaro, que disputava pelo PSL. Detalhe: o Novo tinha candidato à presidência, João Amoedo. Zema estreou na política golpeando seu próprio partido.

Numa eleição marcada pelo ódio ao PT destilado pelas fake news bolsonaristas e pela memória ainda viva dos desmandos dos tucanos em Minas Gerais, o voto no desconhecido Zema pareceu, para muita gente, uma opção correta.

Candidato à reeleição, Zema apoiou Bolsonaro e fez de tudo para garantir a própria vitória e a do ex-capitão.

Além de se valer de parceria com as empresas de mineração que destoem a Serra do Curral, em Belo Horizonte, Zema atuou como rolo compressor contra prefeitos que insistiam em apoiar Lula, o candidato de oposição a Bolsonaro em 2022.

A pressão não deu certo. Lula venceu em 630 dos 853 municípios mineiros, totalizando 48,29% dos votos. Bolsonaro, no entanto, foi o vitorioso nas três cidades mais populosas do Estado: Belo Horizonte, Uberlândia e Contagem.

Se esse foi o motivo que levou Zema a permanecer ao lado de Bolsonaro, mesmo após a derrota do ex-capitão, está longe de ser o único ou mesmo o principal.

Com Bolsonaro inelegível por oito anos, os sonhos políticos de Zema são vários. O primeiro e mais evidente é se tornar uma espécie de herdeiro político dos votos da extrema-direita em Minas e no Brasil.

O segundo – e não tão evidente – é tentar cacifar-se, a exemplo do que fez no passado o também governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, como principal líder da oposição e até mesmo de uma deposição de Lula.

As articulações de Magalhães Pinto junto aos então governadores do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, e de São Paulo, Ademar de Barros, nos idos de 1964, foram fundamentais para o golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart.

Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Jango. Fotos: Memorial da Democracia

Zema parece acreditar que possa repetir a proeza, uma vez que os golpes tradicionais deram lugar aos modelos híbridos, patrocinados por parlamentares, judiciário e mídia, a exemplo do que aconteceu em 2016 com Dilma Rousseff.

Inicialmente um tanto confuso em relação ao terceiro governo Lula, Zema demonstra não ter mais dúvidas.

Além de críticas diretas ao Planalto e ao próprio Lula, ele vem combinado tal postura com visíveis grosserias: faltou a encontro em que o presidente reuniu os governadores, não poupa ataques ao PT e não esteve presente ao lançamento do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o principal do terceiro governo Lula.

Só em Minas Gerais, a iniciativa vai investir R$ 171,9 bilhões em obras e serviços.

A mais recente grosseria de Zema foi anunciar que viajará ao exterior entre 5 e 15 de setembro, logo após Lula ter dito que virá ao estado nos próximos dias para uma série de eventos nos quais, claro, o governador estaria convidado.

A viagem de Zema é a mais sem necessidade possível. Oficialmente ele irá à Áustria e à Itália atrás de investimentos (!) e fará uma vistoria nas obras da empresa italiana que venceu o processo de licitação para construir, operar e manter o controvertido Rodoanel, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Detalhe: a obra favorece as empresas mineradoras internacionais, ameaça moradores e destrói o meio ambiente.

As articulações de Zema contra Lula ficam mais claras se juntarmos algumas de suas atitudes recentes e as colocarmos num contexto mais amplo.

Do nada, ele fez uma declaração sobre as regiões brasileiras que nitidamente visava jogar a população do Sul e do Sudeste contra a do Norte e do Nordeste. Mesmo repercutindo mal em todo o país, sua fala, longe de ser um ato falho, foi um ato consciente, que tem tudo para ser mais um projeto político antipopular e contrario à soberania brasileira.

Um dos primeiros atos de Bolsonaro como presidente, um mês após assumir, foi ter depositado junto ao Secretariado-geral da ONU o instrumento de ratificação da Convenção de Viena sobre a Sucessão de Estados em Matéria de Tratados que entrou em vigor para o Brasil, em 9 de março de 2019.

De que se trata tal Convenção? A sucessão de Estados ocorre sempre que houver substituição de um Estado (o predecessor) por outro (o sucessor) no exercício da soberania sobre parte ou a totalidade de um território.

A título de exemplo, a dissolução da antiga União Soviética deu lugar a vários estados independentes. A Iugoslávia se desintegrou e vários estados a ela se seguiram, como é o caso da Bósnia, Croácia, Montenegro e Macedônia, que se tornaram independentes.

Antes do Brasil apenas 22 países haviam ratificado a referida convenção. Da América do Sul, somente o Equador, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai assinaram a Convenção, mas não a ratificaram.

Daí soar absolutamente estranho que um país como o Brasil, que se orgulha de sua unidade nacional e territorial, tenha confirmado seu vinculo jurídico a esta Convenção.

Estados Unidos, Rússia, França, China, Alemanha, Itália, Espanha, Índia, Japão, Inglaterra, México, Canadá e tantos outros países afirmam os especialistas em direito internacional Evandro Menezes de Carvalho e Raul Bradley Cunha sequer assinaram o tratado.

Por desinformação ou má fé, a mídia corporativa brasileira ignorou a assinatura deste tratado.

Na semana passada, Zema entregou o título de cidadão honorário de Minas Gerais a Bolsonaro.

A entrega se deu cinco dias depois de Bolsonaro ter se internado num hospital em São Paulo, para não comparecer ao depoimento que teria que prestar à Polícia Federal, e três dias antes dele, em outro depoimento sobre as ações golpistas de 8 de janeiro, optar pelo silêncio.

Para prestigiar Bolsonaro, o governador de Minas Gerais não se incomodou em transformar Belo Horizonte em praça de guerra. Desde o momento em que desembarcou no aeroporto de Confins, o ex-presidente teve que fugir de vaias e da indignação popular.

Foto: Arquivo pessoal e Brasil de Fato/Reprodução

O próprio desembarque aconteceu por uma ala lateral, distante de manifestantes que o aguardavam com faixas e gritos de “ladrão”, “genocida” e “golpista”. No trajeto para o hotel, Bolsonaro teve oportunidade de ver outras faixas espalhadas, dando conta que naquele dia havia “um ladrão de joias na cidade”.

Já a entrega do título de cidadão honorário, na Assembleia Legislativa, contou com um contingente policial há muito não visto na capital mineira.

Além de proibidos de ingressarem no plenário do Legislativo, onde ocorreu a cerimônia, a presença dos movimentos sociais no pátio externo da Casa foi monitorada por uma infinidade de policiais militares devidamente fardados e por outro tanto à paisana, que ostensivamente fotografava e filmava os rostos dos presentes.

O título de cidadania para Bolsonaro foi concedido em 2019, logo após ser eleito. Qual a razão para a entrega acontecer agora, quando o seu prestígio e dos militares que o apoiaram está no fundo do poço?

Ao que tudo indica, Zema quis reafirmar, junto aos setores de extrema-direita a sua fidelidade, especialmente depois que Lula, na XV Cúpula do BRICS, dias antes, deixou claro o compromisso do Brasil com um mundo multipolar e com a adoção de moedas nacionais nas transações de comércio internacional.

É importante lembrar que Bolsonaro, quando presidente, bateu continência para a bandeira dos Estados Unidos e declarou amor a Donald Trump.

O BRICS, agora com 11 membros, passa a reunir perto de 40% do PIB mundial, e aponta para uma nova ordem global, em que os Estados Unidos não mais sozinhos dão as cartas.

Outros 30 países estão na fila pedindo ingresso no bloco.

Como as decisões desta cúpula atingem em cheio os interesses imperialistas dos Estados Unidos e de seus aliados na América Latina, região que consideram seu “quintal” – Lula também patrocinou o ingresso da Argentina no bloco -, as demonstrações de descontentamento e desagravo não demoraram a acontecer.

O título de cidadão honorário para Bolsonaro foi uma delas.

Não foi isolada e nem a única.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) fez coro com Zema ao participar de debate sobre o Brasil no Wilson Center, em Washington, organizado pelo Grupo Lide, do ex-governador de São Paulo, João Doria.

O debate aconteceu em 30 de agosto e o Wilson Center é um think tank oficialmente dedicado a estudar relações internacionais, mas na prática integra o rol de entidades que visa doutrinar as elites do Sul Global.

Pacheco declarou que “há grande apreensão dos Estados Unidos com o comportamento do Brasil e como o Brasil deve liderar essa relação com os Estados Unidos”.

Como se isso não bastasse e dito em Washington, Pacheco foi além, tentando lançar a ideia de que o Congresso Nacional também precisa estar presente entre os formuladores da política externa brasileira.

Para bom entendedor, ele afirmou que “é importante que a liderança seja do Executivo, mas sem a intransigência de ter só o pensamento e a perspectiva do Poder Executivo”.

Com essa declaração, Pacheco parece ter aderido ao bloco dos que desejam implantar camufladamente o parlamentarismo no país, com o objetivo de reduzir os poderes de Lula, em uma espécie de golpe branco.

Também presente neste evento estava o vice-governador de Minas Gerais, Mateus Simões, do Novo, um lavajatista de primeira hora.

É importante lembrar que há duas semanas, um lobista austríaco pró-OTAN, o economista Gunther Fehlingrer, ameaçou, em suas redes sociais, “desmantelar o Brasil”, dividindo-o em cinco partes, se o país continuar sendo aliado do BRICS.

Pela gravidade das ameaças, seria diplomaticamente desejável que tal fala fosse desautorizada. Mas o que se viu foi o silêncio absoluto por parte da OTAN.

Aparentemente também do nada, na quinta-feira passada, a embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, Elizabeth Bagley, publicou um tweet no X (antigo Twitter), no qual relaciona a integridade territorial de países como o Brasil à cooperação bilateral com os Estados Unidos.

Textualmente, a embaixadora disse o seguinte: “As ações do Brasil são importantes para o mundo. O que o Brasil faz importa em escala global. Se queremos garantir que valores democráticos sejam mantidos e que a integridade territorial de todas as nações seja respeitada, devemos continuar trabalhando bilateral e multilateralmente”.

Na minha avaliação, esta postagem não tem nada de enigmática, como alguns veículos da mídia corporativa fizeram acreditar.

É uma ameaça, que o governo Lula não se dispôs a responder, enquanto os golpistas procuraram inverter o seu sentido, dizendo que se tratou de uma fala exaltando o Brasil e sua importância no mundo.

Para quem não nasceu ontem e sabe como os golpistas brasileiros e o Tio Sam desde sempre operam, o objetivo é claro.

Essas postagens, somadas às ações de Zema e dos demais integrantes da extrema-direita brasileira, tendo à frente os atuais governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, fiéis a Bolsonaro, e a Arthur Lira, o poderoso presidente da Câmara dos Deputados, indicam muito mais do que o desejo de fazer forte oposição ao terceiro governo Lula.

Apontam para ações que possa garantir a permanência do Brasil como “quintal” do Tio Sam, em flagrante oposição à política externa ativa, altiva e soberana praticada por Lula. Ações dentre as quais não está descartada nem mesmo a divisão territorial do país, devidamente pavimentada por Bolsonaro e por Zema, se isso for conveniente aos interesses estrangeiros.

É importante não perder de vista que essa divisão quase ocorreu no passado, quando o governo de João Goulart foi golpeado por uma articulação de civis e militares, que teve início exatamente em Minas Gerais.

Além de enfrentar os interesses dos setores mais ricos, Goulart também colocava em prática uma política externa autônoma em relação ao imperialismo estadunidense.

Foi de Minas Gerais que começaram os primeiros passos para a ditadura militar. Num 31 de março, há 59 anos, cerca de seis mil militares comandados pelo general Olímpio Mourão Filho marcharam de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, transformando em ação a insatisfação de alguns setores políticos e empresariais contra Goulart.

Se as consequências do regime militar foram terríveis para o Brasil, pelo menos em um ponto os golpistas daquela época não foram bem sucedidos: a Operação Brother Sam não se consumou e o país manteve a sua unidade territorial.

Idealizada pelo então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, e por integrantes do Estado Maior, visando oferecer apoio militar e logístico para as forças golpistas, a operação consistiu na utilização da Marinha e da Força Aérea dos Estados Unidos.

Para tanto uma esquadra militar foi deslocada da região do Caribe para o litoral brasileiro, próximo à costa do Espírito Santo. Ela era composta de esquadrilha de aviões de caça, um navio de transporte de helicópteros com 50 unidades a bordo e um porta-aviões, além de tropas e munições.

Antes disso, os EUA financiaram adversários de Jango e desestabilizavam o governo negando-lhe financiamentos.

Caso houvesse resistência por parte de Goulart, os militares estadunidenses tinham ordens para desembarcar e entrar no conflito, motivando a divisão do país, uma vez que os principais estados do Sul e do Sudeste eram contrários a Goulart.

Essa é a razão pela qual Jango preferiu não resistir.

Zema tem o apoio da maior parte do empresariado mineiro e de notórios golpistas como o ex-governador Aécio Neves. É importante lembrar que foi Aécio quem, ao não reconhecer a derrota para Dilma, deu início ao golpe consumado em 2016.

Não passaram despercebidos, nos últimos dias, balões de ensaio de Aécio e dos tucanos mineiros, agora fechadíssimos com Zema, de que ele pensa em disputar a Prefeitura de Belo Horizonte nas eleições do próximo ano.

Os tempos são outros. A popularidade de Lula está em alta. Em oito meses de governo, ele conseguiu o que parecia impossível: tirar o país da crise e retornar com o crescimento, além de contar com enorme prestígio internacional. Mesmo assim, as velhas jogadas da extrema-direita estão presentes e se mostram cada vez mais evidentes.

Para nos deixar alertas sobre o futuro, no entanto, faltava uma manifestação do Tio Sam.

Não falta mais.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Via: Viomundo

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